São Paulo, quinta-feira, 28 de março de 1996
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Fausto à brasileira

OTAVIO FRIAS FILHO

O caminho da oposição ao poder, sobretudo quando amargado por longo tempo, tem alguma coisa de religioso, como se a teoria fosse a tentação e a prática o pecado. O problema é saber que concessão ultrapassa os limites, em que momento deixamos de viver para a política a fim de viver da política. Como no vício, o problema é saber parar.
Na semana passada, o governo FHC atravessou o último Rubicão: finalmente o PSDB joga fora o salto alto, os punhos de renda, os escrúpulos junto com as boas maneiras. Daqui por diante só haverá a prática. Há 18 anos FHC fazia sua primeira concessão visível, articulando a própria candidatura a senador pelo MDB.
Desde então houve o apoio a Tancredo no Colégio Eleitoral; a recusa da fusão com o PT, onde o grupo de FHC seria minoritário; a adesão velada a Collor, que só não ocorreu de fato porque o governador Covas é um cabeça-dura; a sorte de ser feito ministro da Fazenda por um amigo abilolado e a incorporação, por fim, ao establishment.
Fausto contratou seu pacto demoníaco num momento solene e preciso; esse momento, se existe para FHC, é um estilhaço perdido na sua memória particular. O que podemos ver, de fora, é apenas um deslizamento em que não se distinguem começo, meio e fim. Talvez o contrato seja mais antigo que a eleição para suplente do senador Montoro.
A hipótese mais interessante é a de que FHC tivesse uma propensão concessiva, oportunista, antes e não depois da política: ele seria um Fausto ao contrário, que primeiro tivesse pago o preço, sob a coerção ideológica insuportável da época, para usufruir dos resultados depois. "Esqueçam o que escrevi", a frase negada, seria um grito de libertação.
O FHC livre para agir seria o de agora, desembaraçado dos constrangimentos anteriores desde que a ideologia perdeu o norte. Antes suplente de Montoro, agora "suplente" de Collor, FHC expandiu o seu horizonte de ação pessoal à medida em que se estreitava a possibilidade de qualquer ação original, inovadora, em matéria de política.
Mas o canto da sereia é atordoante. De que adianta cultivar velharias que o tempo provou nada mais serem que superstições do populismo? Não é melhor arregaçar as mangas, já que aos filósofos cabe "transformar o mundo", em vez de resmungar? Uma vez no terreno da prática, as prioridades passam a ser táticas, o importante é invisível para o leigo.
FHC está jogando o jogo da prática, é impossível governar sem cometer atrocidades, o ato do governo já é uma violência em si. A justificativa perante a história é deixar algum legado que transcenda os limites das concessões. Isso é cada vez mais difícil porque desapareceram as grandes escolhas. Tudo é prático e tudo é detalhe.

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