São Paulo, terça-feira, 2 de abril de 1996
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Terceiro olho revela profissão de fé em teatro

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Curitiba e Caruaru não pareciam cidades do mesmo país no decorrer da semana passada. Em que soe forçada a comparação, o fato é que, em Curitiba, enquanto acontecia o 5º Festival de Teatro da cidade, eu só pensava em Caruaru, nas dezenas de pessoas que morriam lá intoxicadas nas cadeiras elétricas da hemodiálise.
Em que soe forçada a comparação, o fato é que Caruaru é parte da minha vida -eram comuns as excursões de Recife para a mais famosa feira do agreste pernambucano, a de Caruaru, para comprar farinha, charque, bonecos de barro e bonecas de pano.
Agora, no assassinato em massa dos doentes de Caruaru, agonizam também as caras de barro, os corpos de molambo daqueles bonecos e bonecas.
Mas eu estava em Curitiba, que em certas cenas parecia Munique, qualquer dessas cidades européias de porte médio, confortáveis, que sediam festivais de cultura enquanto policiais sorridentes fazem ronda nos parques, as mãos para trás, caminhando tranquilos como se não houvesse assassinatos em Curitiba.
Ali desenrolava-se o mundo de faz-de-conta do teatro, tudo o que atores e diretores chamam de "trabalho", mas que parece brincadeira de casinha, a imitação representada -no montar e desmontar de cenários, no carregar de enormes folhas de compensado que se transformam em portas e janelas em cima dum palco.
Vi diretores suando nos bastidores, sujos de poeira e serragem, da graxa das engrenagens, operários do nada. É a chamada profissão de fé que precisa ser anunciada. Como disse o ensaísta europeu Per Kirkeby "É aquela espantosa e compreensível atitude de atores de anunciar tudo nos jornais. Como uma grandiosa demonstração de que sabem muito bem que ser um ator é a maneira mais óbvia de não ser absolutamente nada".
Mas pela exposição no palco, exigem o máximo do público a quem não enxergam: reconhecimento cego, endeusamento. Muitos vivem de carregar pela atmosfera do palco e pela névoa da fama a imagem distorcida de si próprios -teriam perdido a verdadeira ao pisar no mundo de vaidades e narcisismos exacerbados. Não é à toa que há tantos homossexuais na área: tão narcisistas que não conseguem se relacionar com o sexo oposto.
Frustrante não poder estabelecer pontes entre Curitiba -o palco de Shakespeare, de Goethe e Schiller- e o barro de Caruaru. Lembrei-me de um desabafo do dramaturgo Bernard Shaw, negando a influência de Shakespeare. Quis vê-lo no palco, aos gritos:
"Shakespeare o caramba! Shakespeare -um idealista desiludido! um pessimista! um racionalista! um capitalista! Se o cara não tivesse sido um grande poeta, toda aquela porcaria dele já teria sido esquecida há muito tempo!"

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