São Paulo, terça-feira, 2 de abril de 1996
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Eu também ganhei o Oscar de melhor filme

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"I would like to thank the Academy for this award!" -eu comecei. Meus olhos enxergavam uma difusa platéia dourada de louras e galãs, bustos lindos, jóias, smokings e o brilho de centenas de egos felizes. A luz batia em meus olhos já úmidos de emoção.
Um riso se abriu na minha boca e eu continuei gaguejando, pois eu queria agradecer a Academia de Hollywood pelo Oscar de "melhor filme estrangeiro" que eu recebia. A meu lado, Sharon Stone, que me tinha dado a estatueta, como um falo dourado entre suas mãos de unhas rubras, me olhava com curiosidade e me dando uma leve bola (achei em meu delírio).
Foi aí que eu falei: "Eu queria agradecer as coxas de Dorothy Lamour que eu vi, pequenininho, no Cine Palácio Vitoria no Rocha, no filme 'Road to Morocco' e que me deram, de um só golpe, a imagem do sexo e do cinema".
Notei que a platéia se mexeu, divertida com a cultura cinéfila do latino aqui. Eu estava diante do poder dourado do mundo. Não os tanques e as bombas, mas o poder da beleza americana, a matéria de que são feitos nossos sonhos. Do fundo subúrbio carioca eu chegara até ali, perto do Mel Gibson, do Al Pacino, da Sandra Bullock. Maravilhado, falei para a platéia que eu estava grato de ser aceito ali no Primeiro Mundo e que isto era um sinal de que o Brasil entrava no concerto mundial de nações.
Mas, o estranho é que a minha cabeça ficava pensando - não sei por quê -no bar da Lider. O bar do laboratório Lider, para os que não sabem, era o botequim escroto, sujo, ali na rua Alvaro Ramos, onde nasceu o Cinema Novo entre chopes e teorias, nos anos 60. Pois, eu olhava para a platéia do Dorothy Chandler Pavillion e via os dois garçons do boteco, um espanholzinho baixinho e um cearense, com Leon, Joaquim Pedro, Ruy Guerra ao fundo, discutindo cinema.
Afastei a imagem da cabeça e continuei: "Eu queria festejar a integração de duas culturas, porque o Brasil..." Notei um tremor impaciente nos lábios de Sharon Stone a meu lado, mas fui em frente. "O mundo é hoje um grande globo, sem barreiras de língua ou economia". Percebi que na coxia da direita, o Christopher Reeves estava sorrindo para mim, ali na cadeira de rodas, como em 1996. Só que este ano, ela agora já conseguia mover os braços.
Vitória da obstinação americana, que ele vinha mostrar ao mundo. Me animei e continuei. "Tudo começou com uma câmera na mão e uma idéia na cabeça, jovens querendo fazer uma nova linguagem para as platéias, longe do "final feliz" americano...". Mas, se eu estava em pleno "final feliz" americano, ali, brasileirinho ganhando o Oscar, porque eu fui remexer nestas velhas coisas? Sim, (hoje eu vejo) era inveja daquela riqueza toda onde eu era o mais pobre, de smoking alugado.
Continuei falando, mas eu já não via as dentaduras brancas que faiscavam na platéia. Os rostos de Emma Thompson, de Sally Fields não sorriam mais. O busto de Geena Davis arfava, nervoso.
O show tinha de continuar.
"Porque, no Terceiro Mundo a arte de um Tomas Guitierreza Alea ou de um Nelson Pereira..." Os refletores brilhavam em meio a um grande silêncio. Não sei por quê, voltou o bar da Lider na minha cabeça. E mais, em grande detalhe, o açucareiro do balcão, com o açúcar duro no bico e umas moscas passeando em cima.
"Hollywood precisa de nós! Nós somos o novo! Make it new!", gritei. "Hollywood está se repetindo, tem de se arriscar" ("You have to take risks!") Aha!..aha.! Senti que aquela era a hora de trazer a mensagem do Cinema Novo, de Glauber Rocha: "Minha gente" -continuei- "my people..." Percebi que o Anthony Hopkins ria com ironia na primeira fila; busquei o rosto de Tarantino, afinal um jovem rebelde, se bem que já cooptado. "We had a dream..." -parodiei Martin Luther- "tínhamos o sonho de acabar com vocês de Hollywood, que eram os gringos, os imperialistas! Ah! Ah. Mas, com o Oscar, hoje sei que somos todos irmãos!"
Notei um silêncio tenso na platéia. Sharon Stone não estava mais a meu lado. Tinha se materializado ali um galã forte e alto que me sorriu friamente e mostrou-me o relógio. Os quarenta e cinco segundos tinham passado, como avisava a luz que piscava ao fundo. Era o sinal para eu parar. Mas, eu tinha ainda que agradecer a mais gente. Fiz um gesto bem brasileiro de "quebra meu galho" e sorri, com jeitinho.
Eu queria agradecer a tanta gente que havia me ajudado a produzir este filme, "A Saga do Caranguejo" (The Crab Strikes Back) e comecei a falar bem rápido os nomes. Enquanto eu falava ("Quero agradecer à minha mãe por todas as idealizações narcíseas que me estimularam, a Cacá Diegues por ter me mostrado "Lola Montes" e "La Regle du Jeu"), por baixo, o meu inconsciente desfiava outras gratidões.
Lembrei de meu avô me levando para ver as luzes de neon da cidade, lembrei de Humberto Mauro me ensinando que "cinema era uma cachoeira". O segurança-galã me apertou o braço, com dedos de aço, quando eu falei que era uma pena que Orson Welles não tenha ganho Oscar, nem Chaplin. Ficou um clima de gafe. E eu lembrava ainda de "Vidas Secas", da arquibancada de desdentados de "Garrincha", tão diferente do público lindo que me olhava, eu lembrava de Oscarito, Grande Otelo.
Na minha frente, a luz piscava como um alarme. Eu não conseguia parar. Ao longe, eu vi o Stallone comentando algo com o Van Damme, como quem diz: "Vou dar uma porrada neste cara!...". Eu ainda dizia que era "lindo que Hollywood tinha se aberto para a miséria", quando vi que minha voz tinha sumido. Tinham cortado o som. E fizeram um "break". Eu ainda tentei gritar. "Viva o povo brasileiro!", mas o segurança me empurrou para a escada do palco.
Na platéia, muitos se levantavam, irritados. Jack Nicholson gritou: "Shut up, you sucker!" (Cala a boca, babaca!) e eu entendi que meu vicio nacionalista destruíra meu sonho de poder e glória. Eu via as atrizes que eu não comeria, os palácios de cristal ruindo. Ouvi alguém dizendo: "A gente dá uma colher de chá para estes bostas, em nome da globalização, e é isto que acontece!."
Ainda tentei me refugiar nos colegas de Terceiro Mundo que não tinham ganho prêmio, o documentarista do Burundi, o cineasta baixinho de Bangladesh; mas eles desviaram o olhar, enquanto eu passava, empurrado pelos seguranças sorridentes. Mesmo assim, saí de passo firme, segurando meu Oscar como um coquetel molotov. Em volta me sacaneavam: "Go home, chicano! Fuck you, Sonia Braga!", enquanto eu pensava na minha chegada ao Galeão, com o caneco dourado, aplaudido por meu povo.
O "Maskara" me fazia caretas, o canastrão do Robin Williams imitava a Carmen Miranda atrás de mim, enquanto eu passava, delicadamente levado pelo segurança-galã, que parecia o Brad Pitt. Eu ia de cabeça erguida sob as vaias, segurando o meu Oscar que, estranhamente em minhas mãos, parecia o açucareiro do bar da Lider.

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