São Paulo, sexta-feira, 5 de abril de 1996
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Cid Moreira deixa de ser a estátua agourenta

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Nunca tive muita simpatia por Cid Moreira e Sérgio Chapelin, e chego ao ponto de não me convencer com as pesquisas de opinião que mostram a popularidade da dupla. Certamente, Cid Moreira tornou-se mais querido à medida que se espalhou a notícia de seu afastamento do "Jornal Nacional".
O público tende a ser conservador. Quer a mesma coisa todos os dias. Não queria a saída de Cid. Por outro lado, o público é sentimental; vitimado pelas decisões impessoais da direção da Globo, Cid Moreira suscitou movimentos de solidariedade.
Mas tudo, na Globo, acaba tendo final feliz. A grande surpresa foi ver, no "Fantástico" de domingo passado, Cid Moreira fazendo uma mensagem religiosa, como anúncio do programa ecumênico matinal que a Globo começou a transmitir nesta semana. Antigo locutor de catástrofes -ele próprio, na dobra cansada das pálpebras de gesso, parecia misturar a máscara mortuária das vítimas com a solene crueldade de um Jeová do Antigo Testamento-, Cid Moreira deixou de ser estátua agourenta para transformar-se momentaneamente em pastor otimista, em megapastor, em pastor global. A gravidade da voz, o peso da face, o monumental da figura, que enunciarão a partir de agora os editoriais de Roberto Marinho, encarnaram gloriosamente, por um instante, a palavra da Salvação.
Não haveria melhor final para a novela em curso. Tendo a ficar contente, não só pela solução do caso, mas pelos sinais de que o jornalismo da TV Globo está melhorando; torna-se menos oficial, mais inteligente.
O "Fantástico" de domingo passado, sob novo comando, avançou de modo visível em comparação com a velha fórmula. Não sei se foi alucinação minha, mas até a palavra "fisiologismo" foi pronunciada. Tudo ficou mais esperto, até os testes de conhecimentos gerais.
Uma reportagem sobre trabalhadores do mate, que carregam até 150 kg nas costas, valeu pelo programa inteiro. Mas também havia uma entrevista com Salman Rushdie, já elogiada aqui por Esther Hamburger; uma reportagem séria sobre a vida dos caminhoneiros, que compram ilegalmente remédios para não dormir.
Ganhou-se em senso de realidade; diminuiu aquela redundância de mastodonte sentimental que caracterizava o programa -tragédias "humanas", lágrimas em close, curas do câncer, progressos nacionais. Tudo, antes, parecia afirmativo e edificante, mesmo quando a reportagem era de denúncia. Tudo parecia moroso e oficial, mesmo quando se tratava de um número de entretenimento.
Fora do âmbito jornalístico, o "Fantástico" também traz agora uma adaptação das crônicas de Nelson Rodrigues, na série "A Vida como Ela É". A adaptação é correta, embora deixe um pouco a desejar.
Mas o que é que deixa a desejar? Não tenho muita certeza. As historietas de Nelson Rodrigues têm muito de caricatural, de esquemático, de estranho. São falsamente naturalistas. Adaptá-las com atores de carne e osso exigiria um esforço de enfatizar o hiperbólico, o puramente "literário", e não o "real" das situações narradas.
Só que a falsidade naturalista das crônicas de Nelson Rodrigues se contaminou um pouco de outra falsidade naturalista totalmente diversa, a das novelas da Globo. O desajuste se faz sensível para o espectador; a ironia do primeiro, que não tinha compromisso com a plausibilidade da narração, tende a perder um bocado na literalidade da adaptação para a TV.
Um breve comentário sobre "Sai de Baixo", seriado cômico que estreou em seguida ao "Fantástico". O primeiro capítulo foi um tanto fraco, sem rapidez dramática. Tratava-se mais de apresentar os personagens (destaquem-se Marisa Orth e Tom Cavalcante) do que pôr para funcionar a maquinaria do argumento.
A Globo recupera, nesse programa, fórmulas do humorismo antigo, sucessos de TV anteriores à plastificação de Chico Anysio e ao pseudo-sarcasmo detestável de "Casseta e Planeta". Recupera-se algo da pureza tosca de Bronco, da "Família Trapo". Golias, aliás, bem que poderia aparecer.
Mais uma vez, parece ocorrer aqui o abandono daquele modelo ultraconvencional, autolimitado, carregado de censuras do velho "padrão Globo". Será isso mesmo? Se for, é uma das melhores notícias do ano.
Em tempo: escrevo este artigo na noite de terça-feira. Acabo de ver o "Jornal Nacional". Pela primeira vez, o que surge não são as versões do governo, mas uma mostra de problemas do dia. Tudo ficou mais complexo, mais jornalístico. O progresso é visível.

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