São Paulo, sábado, 6 de abril de 1996
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'Enterrem-me em Pé' traz saga sobre ciganos

MARCELO REZENDE
DA REPORTAGEM LOCAL

Se a vida, como defendem os romancistas, é apenas uma longa narrativa, o que significa viver sem contar a própria história?
"Enterrem-me em Pé", da jornalista norte-americana Isabel Fonseca (nas livrarias no próximo dia 10, sem preço definido; editora Companhia das Letras) mergulha no passado de mil anos do povo cigano, que sempre preferiu viver "fora da história".
Isabel Fonseca se tornou um alvo para a imprensa do mundo no ano passado, pelos motivos errados. Namorada do escritor britânico Martim Amis, foi acusada de ser uma das razões de Amis ter "vendido seu talento" aos americanos.
Poucos deram atenção a seu trabalho, uma gigantesca tentativa de dar voz a um povo que sempre se notabilizou pelo silêncio. Até mesmo depois de terem sido assassinados aos milhares pelos nazistas durante a Segunda Guerra. "Enterrem-me de pé porque passei toda a minha vida de joelhos", diz um dos entrevistados de Isabel.
Hoje há 12 milhões de ciganos no mundo. Desse total, 8 milhões vivem na Europa do Leste. Leia abaixo entrevista concedida por Isabel Fonseca à Folha por telefone de sua casa, em Londres.
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Folha - Por que um livro sobre ciganos no fim do século? Suas motivações nasceram dos conflitos na região dos Bálcãs?
Isabel Fonseca - A idéia nasceu quando passei muito tempo na Espanha, em 1992, no período dos Jogos Olímpicos. Um momento em que o país procurava uma imagem para ser representado para o mundo.
Em todos os lugares era possível encontrar pôsteres com a quintessência do que se esperava ser a mulher espanhola, que era, claro, a imagem de Carmem, o grande paradigma da mulher cigana.
Ao mesmo tempo uma outra imagem dos ciganos ainda era presente: a de um povo de refugiados, ladrões e vítimas de perseguições. Eu me interessei pela idéia de que todos tendem a criar mitos sobre esse povo -dos românticos aos negativos- e ninguém na verdade sabe quem são eles.
Folha - Essa mitologia é a razão de existir um ódio histórico, ao menos da Europa Oriental, em relação aos ciganos?
Fonseca - Sim, eles são muito odiados. É uma questão importante. Penso que há várias razões para ódio. Na Europa Oriental, o grande problema é o racismo. O rejeição àqueles que possuem a pele escura, como as várias tribos dos ciganos da região. E há também o fato de que são o símbolo do nomadismo, o que implica a idéia de que não são europeus.
Folha - Em seu livro há a idéia de que os ciganos são um povo tentando viver "ausente da história", se negando a documentar seu passado. Como foi possível então a feitura de "Enterrem-me em Pé"?
Fonseca - Foi tudo muito difícil, e por dois grandes motivos. O primeiro é a dificuldade em conseguir qualquer tipo de informação. O segundo é que os ciganos têm de sobreviver a seu próprio modo. E isso nos leva a uma importante questão. Como sobreviver sem uma nação, uma terra, ou livros? O que é sobreviver então?
Folha - E a única maneira de sobreviverem é continuar "fora da história"?
Fonseca - Conseguir permanecer é ainda a grande questão. O que a Europa Oriental oferece hoje é uma grande possibilidade de mudança. Ainda que em muitos países do Leste Europeu a democracia signifique o direito de possuir uma franquia das lojas Benetton, há por toda parte o desejo de ser "diferente", buscar uma identidade.
O que estamos testemunhando hoje é o desejo cigano de se organizar politicamente pela primeira vez em mil anos. Apesar da ferrenha autoridade de seus líderes naturais, hoje é possível encontrar ciganos membros do parlamento em vários países.
Folha - No Brasil, devido a uma novela de TV, há hoje uma espécie de "moda cigana".
Fonseca - Realmente? Portugal costumava enviar ciganos para as colônias para serem escravos. Isso aconteceu antes dos negros terem essa função. No século 16. Eles também foram escravos na Romênia durante 400 anos. Você sabia disso? Há muitas histórias sobre ciganos que ninguém conhece.

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