São Paulo, sábado, 6 de abril de 1996
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O boto da Amazônia é um santo sem caráter

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Estou lendo um livro de Candace Slater publicado pela Chicago University Press e chamado "Dance of the Dolphin", ou "A Dança do Boto". A capa do livro, de um cinza azulado, traz o desenho de um boto que me fez lembrar Carlos Alberto Ricelli representando o boto no filme de Walter Lima Jr., pois está de gravata borboleta, chapéu de feltro e aquele sorriso malandro que é a marca do boto. Não foi à toa que o boto -que também chamamos de golfinho, tucuxi, delfim- se transformou numa espécie de bicho de estimação do homem nos mares e rios em que aparece. Trata-se de um mamífero sorridente, brincalhão. E, na Amazônia, safado.
Vejo que, agora mesmo, severas leis da Marinha dos Estados Unidos proíbem compra de atum que prenda botos em suas redes.
Por alguma razão botos paqueram os cardumes de atum, ou vice-versa, e os americanos querem o atum, mas não causando a mortandade de risonhos "dolphins", que tanto alegram aquários de jardins zoológicos ou tanques de beira de praia da Califórnia.
Acho que só na Amazônia é que o boto desenvolveu suas técnicas de sedução sexual e passou a ser, em grande parte, responsável pela maternidade de moças sem marido, que contam, depois de grávidas, como apareceu no baile um belo rapaz desconhecido, que dançou com ela e depois a levou para o fundo do rio, onde fez com ela o que quis.
A gente chega, à medida que vai avançando pelo livro de Candace Slater -que sabe fundir como ninguém seu conhecimento básico do assunto com o cuidado do repórter que fala com todo o mundo, anota sexo e idade de quem fala, profissão, grau de instrução -, a duas conclusões principais. A primeira é que o mundo "encantado" da Amazônia, que vive sobretudo do boto, mas também da boiúna, cobra grande, cobra Norato, é tipicamente regional.
Deve pouco aos índios e independe da religião católica. A segunda e melancólica conclusão é que esse mundo de extraordinária riqueza mental e mistério religioso está o tempo todo minguando.
Muitas das estranhas e belas histórias que a autora ouviu de homens e mulheres de várias idades e em diferentes cidades daquela zona de grandes florestas e rios gigantescos acabam num tom tristonho. Como não houve, com a devastação da Amazônia, nenhuma melhoria geral do nível de vida, ninguém ri quando fala na escassez atual de histórias de boto ou boiúna, como quem ri de crendices de infância que ficaram para trás.
Em Parintins, por exemplo, Candace ouviu de um sapateiro de 28 anos: "Gente da minha idade praticamente não acredita nessas histórias de boto. Mas eu acho que, no passado, as pessoas viram mesmo esses seres encantados. É que naquele tempo tinha mais floresta, mais espaço para essas coisas". O mesmo, por outras palavras, lhe disse em Óbidos um homem de 87 anos cujo pai, que tinha sido escravo, não mentia nunca. "Ele falava nos encantados, portanto a senhora pode ter certeza de que no tempo dele existiam mesmo." Por outras palavras, o que se acredita é que o empobrecimento da terra gera o empobrecimento do espírito.
Candace Slater menciona "Cobra Norato", o belo poema amazônico de Raul Bopp, que certamente queria incorporar os mistérios amazônicos ao movimento modernista, antropofágico. Reli, aliás com o prazer de sempre, "Cobra Norato e Outros Poemas", não na edição original, de 1931, e sim na de 1956, que reproduz os prefácios anteriores.
Uma coisa esses prefácios revelam. Bopp prezava muito mais Tarsila, a quem dedicou "Cobra Norato", do que Oswald de Andrade. No prefácio da terceira edição, Bopp declara, com a maior sem-cerimônia: "A chefe do movimento foi Tarsila. Oswald ia na vanguarda, irreverente, naquele solecismo social de S.Paulo. Foi elemento de resistência e agressão. (...) Os que iniciaram o movimento preocuparam-se em (...) fixar meridianos para um novo 'Diálogo das Grandezas'. Raça de homens que se orgulhavam de engolir seu semelhante. (...) A área antropofágica encalhou em S.Paulo com esse material a bordo. Urubu foi ver se as águas já tinham baixado. Não voltou mais".
Mas não estou aqui para falar no Movimento Antropofágico, no urubu ou no Abaporu, e sim na autora Candace Slater, que tanto já escreveu sobre o Brasil e é tão pouco conhecida entre nós. Há bem uns 20 anos que ela, atualmente professora de português e espanhol na Universidade da Califórnia, em Berkeley, conhece como poucos o interior do Brasil. "A Dança do Boto" é seu terceiro estudo sobre o Brasil. Escreveu, antes, "Stories on a String", "Histórias num Barbante", sobre a nossa literatura de cordel, e um monumental "Trail of Miracles", "Trilha de Milagres", sobre os romeiros em busca de milagres no Juazeiro de "meu Padim" Cícero.
Para fazer esse livro, publicado em 1986, Candace viajou com os romeiros e gravou cerca de 200 horas de entrevistas e depoimentos. É impossível, hoje em dia, tratar do Padre Cícero (a mais popular história que existe no Brasil depois da de Antônio Conselheiro) sem levar em conta "Trilha de Milagres". O curioso é que nenhum dos livros de Candace (Cândida, como ela própria se chama no Brasil) foi jamais traduzido.
Candace Slater nunca deixou de visitar o poeta Drummond, quando vinha ao Rio. Ou Ariano Suassuna, quando ia ao Nordeste. Vinha também aqui ao Leblon, conversar comigo.
Espero que "A Dança do Boto" mereça atenção. Só o capítulo 6, "O boto como 'encantado"', vale um estudo inteiro, pela diferença que estabelece entre os milagres de santos católicos e as miraculosas façanhas, raramente recomendáveis, de botos.
Os botos agem muito mais depressa que os santos e estabelecem com as pessoas uma relação insuportavelmente viva, sexual. São, em suma, uma espécie de santos endemoninhados, independentes de Deus. Serão até talvez capazes de oferecer a pessoas que mereçam sua simpatia alguma espécie de vida eterna: mas no fundo do rio.
Concluo que havia, na realidade, não um, mas dois possíveis paraísos na Amazônia: o católico e o do boto. Em Belém, Candace falou com um macumbeiro de 67 anos, funcionário público. Quando menino, contou ele, via os encantados saírem do rio à noite. Agora, perturbados pelos ruídos das cidades e pelas luzes do tráfego, faz bem uns dez anos que desapareceram.
O jeito é mergulhar no rio. À noite. Enquanto é tempo.

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