São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
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Vacas loucas, jornalismo anêmico

MARCELO LEITE

A Folha já explicou até por que a bolsa escrotal de recém-nascidos é roxa ou preta, mas não que a doença da vaca louca dificilmente afeta o homem, mesmo quando este ingere carne britânica contaminada. Pior, na capa de domingo passado, o jornal lançou acusação equivocada sobre a carne brasileira.
A manchete de oito dias atrás alertava: "Carne ilegal chega a 50% no país". No último parágrafo da chamada, afirmava que "a carne ilegal pode causar neurocisticercose". Biólogos, veterinários e médicos procuraram o ombudsman para dizer que esta informação está errada, embora elogiando a denúncia sobre falta de fiscalização.
Cisticercose x teníase
A reportagem tratava da carne bovina. Quando esta apresenta cisticercos (larva em forma de caroço, ou "pipoca"), a doença que causa no homem é menos grave: teníase, ou fixação no intestino do verme conhecido como solitária.
Já para ocorrer a cisticercose, é preciso que o homem faça as vezes de boi. Ele tem de ingerir ovos de solitária, não cisticercos (larvas). Como estes ovos só estão presentes em fezes humanas, é a falta de higiene pessoal que provoca a cisticercose (autocontaminação), ou o consumo de alimentos contaminados -verduras adubadas com fezes, por exemplo.
O ovo atravessa a parede de órgãos digestivos e cai na corrente sanguínea. Pode então alcançar qualquer parte do corpo. Se parar num músculo, é a carne humana que passa a abrigar um cisticerco ("pipoca"). Se parar no cérebro (neurocisticercose), pode provocar cegueira e até demência.
Há, por fim, outra constatação científica em favor da carne de vaca: quase só há registro de cisticercose por solitária do porco (Taenia solium). Discute-se se a carne bovina (Taenia saginata) pode de fato causar neurocisticercose.
A precisão, em jornalismo científico, é tudo. Em especial quando se trata da saúde de quem está lendo.
Moléculas doidas
Repórteres, redatores e editores da área de divulgação científica são acometidos de tempos em tempos por epidemias de sensação. Foi assim com o Ebola (perdão, Ébola) e com a bactéria devoradora de músculos. Basta o leitor ser um pouco hipocondríaco para entrar em pânico.
A moda da vaca louca nem é nova. Há muitos anos, aqui mesmo na Folha, o mestre José Reis deu notícia da BSE, ou encefalopatia espongiforme bovina. Ele já falava na parte mais esquisita da doença, o fato de ser causada não por um microrganismo, mas moléculas batizadas de príons.
Essas informações têm sido repetidas à exaustão desde que o governo britânico reconheceu, há poucas semanas, uma possível ligação entre o mal bovino e a morte de 11 portadores da doença humana, Creutzfeldt-Jakob (CJD). Algo muito próximo da histeria coletiva se instalou na Europa e pode alastrar-se.
É nessas horas que deve entrar em cena o melhor jornalismo científico. Seu papel é esclarecer, doa a quem doer.
Genes ou país errados
Um exemplo de missão cumprida pode ser encontrado na edição de 8 de abril da revista norte-americana "Newsweek".
Numa reportagem didática sobre o papel dos príons, ela explica que nem todos os que comerem carne de vaca com BSE vão desenvolver a CJD. Há indícios de que é preciso ter predisposição genética. Nascer com o gene errado, além de comer a carne errada.
De qualquer maneira, é apenas um detalhe de uma doença distante. A imprensa e as autoridades brasileiras, de sua parte, ainda não conseguiram sequer informar ao público por que -ali mesmo em Caruaru- três dúzias de brasileiros já morreram.
Como gado, sem razão.

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