São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Luxúria é 'máquina de pecadores'

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Pecados como a gula existem na vida atual; que o digam os escravos da balança

O pecado é a obsessão característica do cristianismo. Sem ele, catolicismo, protestantismo etc. talvez nem existissem ou seriam incompreensíveis. E o que é pecado? Trata-se de uma transgressão, da perpetração de algo proibido. Um crime, portanto, ou rompimento de um tabu? Não, pois estes existem, de alguma forma, em todas as sociedades e religiões. O pecado, porém, é cristão, como a peregrinação a Meca e Medina é muçulmana ou a preocupação com a limpeza/pureza ritual é judaica. Alguns pecados podem até se associar a crimes e tabus -assassinato, roubo, canibalismo-, mas não é isso que os distingue.
A lista clássica dos sete piores pecados, os assim chamados "capitais", foi elaborada há mais de um milênio e meio pelos eremitas cristãos dos desertos egípcios e codificada na Idade Média, quando ganhou até uma sigla, Saligia, ou seja, as iniciais de Superbia, Avaritia, Luxuria, Invidia, Gula, Ira, Acedia -nomes latinos que correspondem, em português, aproximadamente a: soberba, avareza, luxúria, inveja, gula (que inclui também a bebedeira), ira e acídia.
O curioso é que em cada pecado não é o ato em si que merece condenação, mas seu excesso. Seu contrário não é, em princípio o afastamento absoluto, mas simplesmente uma virtude, a moderação. Ainda assim, pela sua própria natureza, essa lista prestou-se sempre maravilhosamente às artes e literaturas ocidentais, que, desde o início, sentiam uma atração e tanto pela hipérbole, pelo exagero.
O "Inferno" da "Divina Comédia" de Dante está, mais que de boas intenções, cheio de casos ilustrativos do que "Saligia" tem de mais grotesco. "Gargântua e Pantagruel" de Rabelais é um mostruário esplêndido de todas as variedades da gula. As diversas versões da história de Don Juan, começando com "El Burlador de Sevilla" de Tirso de Molina e continuando em Molière (autor também de um "Avarento"), Mozart e Púchkin, ilustram a luxúria. De Shakespeare a Dostoiévski, todos os pecados capitais foram tematizados, esmiuçados, condenados, defendidos ou simplesmente problematizados.
Hoje em dia, o pecado não é mais um conceito popular. Mais do que uma decorrência inevitável de uma religião movida por algo distinto, ele parece demasiadamente ter sido inventado sob medida para prender os homens a certas crenças e sobretudo a determinadas instituições. Quando, por exemplo, a idéia de luxúria é ampliada para incluir toda paixão carnal, ela se torna uma máquina de fabricar pecadores. Afinal, se os cristãos fossem proibidos não de copular à vontade, mas sim de, digamos, furar olhos de filhotes de canguru ou de comer perninhas de baratas, quantas pessoas sofreriam de remorsos, de má consciência, quantas rezariam ou se confessariam?
As sociedades modernas toleram cada vez menos que a vida privada dos cidadãos seja controlada por doutrinas ou instituições, e isso significaria o fim do pecado, um mundo onde não haveria, como diz Caetano, "nem pecado nem perdão". No entanto, não é bem assim que ocorre, e as proibições que saem por uma porta entram por outra. Quem acha que a gula foi liberada não tem balança em casa nem começou a contar calorias. A luxúria? Talvez, mas depois de saber o histórico do(a) parceiro(a) e sem esquecer os preventivos. A acídia e a ira são contraproducentes num mundo competitivo, enquanto a soberba, a inveja e a avareza continuam pegando muito mal. Em suma, o cristianismo perdeu de fato ou, no fundo, a vida moderna perpetua os velhos preceitos religiosos, só que praticados -para parafrasear Von Clausewitz- com outros meios, isto é, definitivamente institucionalizados?

Texto Anterior: Os sete vícios capitais
Próximo Texto: Internet aumenta horizontes do pecador
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.