São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
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A série inexorável da morte

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

"X, Y, Z.", estréia literária de Milton Coutinho, é um livro de contos inusitados, de uma estranheza que prende a atenção do leitor sem que saibamos, de início, exatamente o porquê. Aos poucos, porém, seu segredo -de Polichinelo- fica claro: limpidez e frieza no narrar, domínio do jogo das figuras de linguagem (metáforas, sinédoques etc), personagens com sangue próprio, marcantes, inconfundíveis.
No conto que dá o nome ao livro, o brilhante matemático Umberto sofre de um mal indeterminado e procura a salvação na "atmosfera" da cidade de Artêmia. Ali, sente-se magnetizado pela personalidade de Stefano, tipo esquisito, aventureiro bem-postado, e tudo faz para que este, no hotel, paquere a sua mulher, pois avalia que, dessa aproximação, poderá extrair do homem, para si, como numa espécie de osmose, a cura, a vivacidade que nele se extraviara. O fio da narrativa é tecido pelos próprios personagens, um de cada vez, cada qual com seu estilo e, obviamente, sua visão dos fatos.
A mesma idéia de encadeamento narrativo ressurge no conto "5 (Cinco),", em que Coutinho faz se sucederem historietas do tipo "fait divers", ligadas uma a outra à moda Sherazade e envolvendo homens "comuns" em diferentes épocas e países: um João no sertão nordestino, um Hans Vogtman em Munique e um John Winston no Arizona, os três na época atual; mais um Giovanni de Romanis na Itália e um Jean Brattin na França, ambos na época em que a nobreza ainda controlava os poderes locais.
Em "Os Passos na Estrada", um cidadão chamado M. se vê às voltas de uma confusão de identidade aparentemente superável, mete-se em situações pensando ser quem não é ou sendo quem não pensam que ele seja. Não por acaso, Coutinho se refere de passagem, aqui, ao romance "Se um Viajante numa Noite de Inverno", de Italo Calvino, em que o falso e o verdadeiro se confundem, perdem mesmo a importância relativa, numa espécie de homenagem ao reino da ficção.
Um cinismo hilariante marca o conto "Anatomia de um Otimista". Em primeira pessoa, um homem narra a história trágica de sua vida como se fosse a do ser mais sortudo do planeta, um "eleito", como ele mesmo afirma. Ao lembrar o período em que sua família foi obrigada a morar ao pé de uma favela, por exemplo, ele nos conta: "Sim, eu era um dos raros privilegiados a descobrir, ainda em tenra idade, que a vida dos seres humanos não vale absolutamente nada e ainda mais: que a única linguagem que os homens realmente entendem e respeitam é a da violência".
Vale a pena resumir esses enredos, para dar uma idéia do universo particular, autoral, que Milton Coutinho constrói nos cinco contos de seu primeiro livro. A morte é tema constante, assim como a passagem inevitável do tempo em batalha contra essa morte, como destaca na "orelha" Ricardo Cota. Mas tudo isso sem perder a ironia, o suspense, a leveza, que dão substância lúdica à linguagem empregada pelo escritor.
Um único senão fica reservado para a previsibilidade existente no último conto, "Sidônia", eixado num caso de amor interrompido, em que, devido a um deslize narrativo, o segredo se revela ao leitor atento antes da hora desejada pelo autor. Ainda assim, a beleza do conto se mantém intacta. O que já não é pouco.

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