São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
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A recorrência de um mito moderno

Publicações no Brasil mostram a atualidade do tema fáustico

MANUEL DA COSTA PINTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

LIVROS
Fausto é, ao lado de Don Juan, o mito moderno por excelência. Assim como a história do libertino -reescrita por Tirso de Molina, Lorenzo da Ponte (libretista do "Don Giovanni", de Mozart) e Molière, entre inúmeros outros autores-, a tragédia do homem que vende a alma ao demônio em troca de saber e prazer ocupou o imaginário de escritores como Cristopher Marlowe, Goethe, Paul Valéry e Thomas Mann, e de compositores como Schumann, Liszt, Gounod, Wagner e Mahler.
No Brasil, a recente publicação de "Fausto no Horizonte", da ensaísta Jerusa Pires Ferreira, a reedição do "Primeiro Fausto", do poeta português Fernando Pessoa, e a encenação da peça "Nowhere Man", versão do mito pelo diretor Gerald Thomas (que no ano passado havia montado o "Don Juan" de Otavio Frias Filho) são uma pequena amostra da recorrência do tema fáustico.
Ao contrário das mitologias grega e cristã, que construíram uma cosmologia que governava a vida sobre a Terra, os mitos de Fausto e Don Juan representam um desafio à ordem divina que reitera o abismo infranqueável que há entre o mundo dos deuses e o anseio humano de tomar o destino nas próprias mãos.
Se nessa afirmação da individualidade está sua modernidade, não se pode dizer, porém, que o mito fáustico já tenha nascido com essa constelação de sentidos. Segundo Jerusa Pires Ferreira, o Fausto se inscreve no chamado "ciclo do demônio logrado" -uma das variantes da literatura popular medieval, que ela estuda desde raízes francesas, italianas e até lituanas, até os folhetos de literatura de cordel do Nordeste brasileiro e relatos de tropeiros gaúchos.
Dentro dessas variantes, o Fausto corresponderia a um tipo específico de narrativa, em que o pacto com o diabo é levado a cabo pela figura do ferreiro -que representa o "herói civilizador", cujo domínio da técnica o distingue do artesão comum, representando ao mesmo tempo uma possibilidade de transformação social e de proximidade com um saber alquímico, esotérico e, portanto, demoníaco.
Daí a progressiva identificação do Fausto com a sabedoria, com a ciência e com a palavra (em contraposição ao universo oral da tradição popular, do qual a personagem vai se afastando).
Assim, no primeiro e anônimo relato impresso que se conhece, datado de 1587 na Alemanha, Fausto é um estudioso de medicina, astrologia e matemática que busca alimentar seu orgulho intelectual e seus apetites carnais.
Já no "Fausto" de Goethe há um choque entre o idealismo fáustico e o universo popular em que transita o diabo: o Fausto goethiano é quase indiferente às ofertas de prazer, glória e fortuna de Mefistófeles, só lhe interessando neste a chave para a conquista da realidade metafísica.
É essa dimensão abstrata que marca a diferença entre as versões "eruditas" do mito (que Jerusa Pires Ferreira promete explorar em estudo futuro) e suas atualizações pela literatura popular.
Por isso, no "Primeiro Fausto", de Fernando Pessoa, a personagem do demônio praticamente desaparece. Drama sem ação e sem personagens, o que se ouve é uma voz fáustica, perplexa diante do mistério de um mundo que nem sequer deus compreende ("Há um mistério maior que Deus em tudo"), um mistério inominável, posto que a palavra sempre instaura um déficit entre aquilo que enuncia e o que deixa por falar.
O mistério do Fausto pessoano se insinua atrás de cada verso e pressupõe um conhecimento esotérico que nunca se materializa (apesar do pendor do poeta para o ocultismo) -já que o mistério se confunde com o inefável.
Fernando Pessoa nunca chegou a organizar os poemas e fragmentos de poemas do "Primeiro Fausto", mas deixou um esboço geral da obra.
Com base nesse plano, uma primeira versão, contendo 90 fragmentos, foi publicada em 1952. Posteriormente, em 1986, o pesquisador brasileiro Duílio Colombini (morto em 1991) ampliou para 231 os extratos -e é esta versão que a Editora Iluminuras republica agora.
Comparando o esboço temático do poeta e os poemas que lhe são correspondentes (na edição de Colombini), percebe-se que o Fausto de Fernando Pessoa é uma elegia à pura negatividade, em que se reconhecem os ecos do heterônimo Álvaro de Campos; um solilóquio cujos cinco atos e entreatos falam da impossibilidade do conhecimento, do amor e da transcendência.
Paralisado diante do mundo, o Fausto pessoano é, desde o início, consciente do destino do mito que encarna:
"Com que realidade o mundo é/
sonho.
Com que ironia mais que tudo/
amarga
Me não confrange fria e/
negramente
Esta infinita pretensão a ser!"
Drama estático, o poema de Fernando Pessoa é também um drama extático, em que o sentimento do horror (palavra inúmeras vezes repetidas em seus versos) é o único gozo possível de uma personagem melancólica e antiutopical, que campeia no vazio da existência.

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