São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
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A clarividência das abstrações de Valéry

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

No prefácio a "Leonardo Poe Mallarmé", Valéry descreve esses precursores como "três mestres na arte da abstração". "Pela abstração constrói o homem" é outra famosa fórmula valeriana, que nos faz relembrar o sentido da palavra em latim: "extrair, remover, retirar". A construção, em Valéry, só se dá pela remoção da realidade gasta, que ele se recusa a associar com a imaginação desses mestres.
Seu lindo poema "Palme" termina com uma metáfora que me parece ter um papel central em toda sua poesia: "É assim como quem pensa / -Um dispêndio da alma,/ Que cresce daquilo que dá". A palmeira é a imagem de uma mente tão rica de pensamentos que as dádivas da alma só fazem constantemente aumentá-la.
Numa meditação de pós-guerra (1919) sobre "A Crise do Espírito", Valéry pinta inesquecivelmente o retrato do Hamlet europeu, observando milhões de fantasmas: "Mas ele é um Hamlet intelectual. Medita sobre a vida e a morte das verdades. (...) Reflete sobre o tédio de reiniciar o passado, sobre a folia de querer ser sempre original. Oscila entre um e outro abismo, pois dois perigos ainda ameaçam o mundo: a ordem e a desordem". É uma passagem que ainda guarda força, 70 anos depois. O temor profético de Valéry era o de que a Europa pudesse tornar-se "o que ela, de fato, é: um pequeno cabo do continente asiático". Essa preocupação com a cultura européia, que tem seu lado paroquial, é um elemento dos mais importantes em todos os seus escritos em prosa.
Meditando sobre Descartes, arquétipo do intelecto francês, Valéry define a lei de sua própria natureza: "Descartes é sobretudo um homem de ação intencional". Para Valéry, a consciência é uma aventura da intenção; e é, em parte, este sentido de busca deliberada, no cultivo da consciência, que faz dele uma figura central da inteligência literária do Ocidente.
Valéry desprezava a originalidade, mas suas idéias críticas figuram entre as mais originais do século. Seus "Analectos" reúnem uma profusão de verdades desconfortáveis sobre a questão da própria originalidade literária: "O valor das obras de um homem não está nas obras, mas em seu desenvolvimento pelas mãos de outros, em outras circunstâncias". "Nada é mais 'original', nada é mais 'você mesmo' do que se nutrir dos outros. Mas é preciso digeri-los. Um leão é feito de ovelhas digeridas." "Todo artista quer inspirar o ciúme, até o fim dos tempos."
Seu texto central sobre a originalidade é a "Carta Sobre Mallarmé (1927), na qual as relações com aquele que foi seu precursor mais autêntico lhe inspiram ironias dialéticas de grande beleza: "Dizemos que um autor é original quando não somos capazes de acompanhar as transformações escondidas que os outros sofreram em sua mente; isto é, a dependência do que ele faz, com relação ao que os outros fizeram é excessivamente complexa e irregular. (...) Existem obras cuja relação com outras, anteriores, é tão intrincada que nos deixa confusos, a ponto de atribuí-las à intervenção direta dos deuses. (Para estudar mais profundamente o assunto, seria preciso discutir também a influência da mente sobre si mesma e de uma obra sobre seu autor. Mas este não é o lugar adequado.)"
O lugar adequado é qualquer outro texto de Valéry porque aqui se define seu verdadeiro tema: a influência da mente de Valéry sobre si mesma. Não é este também o grande tema de Montaigne e Descartes, e de todo francês dotado de sensibilidade e inteligência? Valéry jamais se cansa de meditar sobre os efeitos de seu pensamento e seus escritos sobre si mesmo. Equívocos criativos de interpretação, induzidos nos outros por sua obra, não deixam de ter interesse para ele; mas nada se compara ao seu entusiasmo pelos equívocos criativos de Valéry interpretando Valéry.
Exemplos desse entusiasmo não faltam; escolho um dos mais sutis e fugidios, um excerto do diálogo "A Alma e a Dança", de 1921 (traduzido abaixo por Marcelo Coelho). Valéry nos dá um Sócrates refletindo sobre "esse veneno dos venenos, essa peçonha oposta a toda natureza", a redução da vida às coisas como elas são:
"FEDRO. Que peçonha?
SÓCRATES. ...que se chama: o tédio de viver! (...) esse tédio perfeito, esse puro tédio... que não tem outra substância senão a própria vida, e outra causa que não a clarividência de quem vive. Esse tédio absoluto nada mais é em si que a vida inteiramente nua, que se encara claramente.
ERIXÍMACO. É bem verdade que se nossa alma se purga de toda falsidade, e se priva de toda adição fraudulenta àquilo que é, nossa existência se vê ameaçada na hora, por essa consideração fria, exata, razoável, da vida humana tal qual é. (...) Nada, sem dúvida, nada de mais mórbido em si mesmo, nada de tão inimigo da natureza do que ver as coisas como elas são. Uma fria e perfeita clareza é veneno impossível de combater. O real, em estado puro, paralisa instantaneamente o coração...
Ó Sócrates, o universo não pode suportar, um só instante, ser o que é. É estranho pensar que aquilo que é o Todo não possa ser suficiente a si mesmo!... Não há outra razão para a existência dos mortais. Por que são eles mortais? -Ocupam-se de conhecer. Conhecer? E o que é conhecer? -É assumir não ser aquilo que se é.- Eis então os humanos delirando e pensando, introduzindo na natureza o princípio dos erros sem limite, e essa miríade de maravilhas!... (...)
A idéia faz entrar, naquilo que é, o fermento do que não é... Mas enfim a verdade algumas vezes se declara, e destoa do harmonioso sistema das fantasmagorias e dos erros... Tudo ameaça logo perecer, e Sócrates em pessoa vem me pedir um remédio, para esse caso desesperado de clarividência e tédio!..."
Estamos próximos, neste pondo, das apropriações de Valéry no poema "Notes Toward a Supreme Fiction" de Wallace Stevens. A "clarividência dos vivos" de que fala Stevens não pertence a ele, ou a nós: é o dom particular do redutoramente lúcido Valéry, capaz de ver a "vida inteiramente nua". Se Sócrates, aqui, é Valéry, o escritor, então Erixímaco é Valéry, o leitor... de Valéry! Uma "fria e perfeita clareza" é o que Valéry aprendeu consigo a perceber -em Valéry.
A realidade, no caso, é menos o princípio da realidade de Freud do que o próximo passo depois do nada, do abismo ou vazio final no Edgar Poe dileto dos franceses, e em Mallarmé. Uma forma pragmática de gnosticismo, implícita em Poe e desenvolvida em Mallarmé, alcança seu triunfo no sermão irônico de Valéry sobre "o que é conhecer". O terror do universo, face à sua própria nulidade, estimulada a proliferação de mortais, como se cada um de nós não passasse de mais uma e desesperada figura. Nossos erros, nossas maravilhas, fazem entrar "naquilo que é, o fermento do que não é".
Chegamos, mais uma vez, à visão do poema "Palme", já que o que se escuta é a influência sobre o próprio Valéry dessas suas linhas: "Às vezes, quando há desespero, / Quando o adorável rigor / A despeito de tuas lágrimas, só opera / Em sombras de langor..."
"Há uma lei rigorosa da literatura, segundo a qual não se deve jamais chegar ao fundo de coisa nenhuma." Valéry não chegou a seguir seu próprio conselho, na tentativa sem fim de explicar o domínio da autoconsciência intencional. Ele nos parece, agora, o último homem de letras na tradição francesa a ser capaz de reconciliar a consciência aguda de sua própria consciência com as grandiosas construções que só a abstração torna possíveis, ao se distanciar de uma retórica elevada. Comparados a ele, Sartre e Blanchot, sem falar em Derrida, só atingem a criação num tom de quem já chega irrevogavelmente depois.

Tradução de Arthur Nestrovski.

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