São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
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Vocação política, poder, vaidade

MARIA SYLVIA C. FRANCO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"(...) não pode haver caricatura mais ruinosa da política que a do mata-mouros que joga com o poder ao modo de um arrivista ou Narciso vaidoso, em suma, todo adorador do poder como tal." Max Weber
O título e epígrafe deste artigo o remetem aos ensaios de Max Weber sobre teoria e prática, ética e política. Invoca-se, no centro do atual governo, a distinção weberiana entre ética de convicção e ética de responsabilidade, para, suprimindo escrúpulos, justificar o mando pessoal travestido em democracia, promover o acúmulo e concentração primitivos da riqueza simulados em "reformas" modernizadoras, impor alvos particulares como nacionais. Descortina-se o abismo entre essa posição e as teses weberianas percorrendo algumas delas, por espinhoso que seja o caminho.
Em Weber, os nexos de teoria e prática pressupõem a rigorosa distinção entre o "valor de um imperativo prático enquanto norma (...) e o valor de verdade de uma proposição científica" (1). Como corolário, este requisito não se confunde com "neutralidade" ética, a qual pode apenas velar interesses poderosos. "Indiferença de convicção e objetividade científica não têm nenhuma afinidade interna" (2), reitera Weber.
Distinguir análises empíricas e juízos de valor não implica extirpar as discussões sobre estes últimos: ao contrário, a importância básica do foco valorativo entranha-se nos pressupostos e métodos das ciências da cultura, tema a que voltaremos. Neste ponto, importa indicar que sua abordagem científica do sentido fundamenta a "explicação compreensiva" e, nesses termos, um resultado importante da investigação é desvendar, no mundo efetivo, o confronto de inconciliáveis decisões últimas. Essa descoberta de atitudes valorativas irredutíveis impede posições dogmáticas, assim como todo relativismo. O saber científico, nesse rumo, porque se afasta, se enlaça à ordem ética: "Tudo compreender não significa tudo perdoar" (3).
Não surpreende que teoria e prática sejam ao mesmo tempo distintas e articuladas, no horizonte em que Weber se coloca: supor que máximas formais, como as da ética kantiana, não contenham "diretivas de conteúdo para a avaliação das ações (...) não é exato de modo algum". Esta premissa conduz a situar, no registro das máximas universais, seja a ética de convicção, justificada pelo valor intrínseco da conduta, seja a ética de responsabilidade, regida pelas consequências previsíveis dos atos (4).
Ambas, dotadas de "caráter rigorosamente formal", são "semelhantes aos conhecidos axiomas da Crítica da Razão Prática", formalismo que envolve, insiste ele, indicações substantivas para a avaliação prática. Como exemplo, examina o interdito de fazer das pessoas meios, expondo suas implicações (inclusive o sentido em que atos, em esferas exteriores à ética, assumem a sua dignidade) para concluir que "o caráter formal desse imperativo ético eminentemente abstrato não é indiferente ao conteúdo da atividade" (5).
Neste amplexo de condições formais e mundo fenomênico determina-se o elo entre conduta política e ciências humanas. "A superficialidade do quotidiano (...) consiste precisamente nisto: os que nela vagueiam não estão conscientes, e sobretudo não querem se tornar conscientes, em parte por condições psicológicas, em parte pragmáticas, da confusão de valores mortalmente antagônicas. Evitam a escolha entre 'Deus' e o 'Demônio' (...) O fruto da árvore do conhecimento (...) consiste em saber, diante dessas contradições, que (...) a vida como um todo, se não a deixarmos deslizar como um fenômeno da natureza, mas for conscientemente guiada, denota uma série de decisões últimas nas quais a alma -como em Platão- escolhe deu destino -o sentido de seu próprio ser e atividade." (6)
Este texto recolhe teses weberianas centrais: a prática humana não está sujeita à necessidade natural e as ações sociais apresentam um caráter empírico unificado por nexos compreensíveis e não apenas detectáveis do exterior. O sentido, princípio constitutivo ao mesmo tempo da cultura e de seu conhecimento, é produto da liberdade humana, força que legisla a si própria e elimina o arbitrário e contingente. Weber combate as doutrinas que identificam "o normativamente certo com o imutavelmente emergente", ou reconhecem que "tudo o que tem razão de ser deve ser", ou, ainda, diluem a ética nos valores culturais. Voltando ao fio crítico: a época que provou da árvore do conhecimento sabe que não pode apreender o "sentido do acontecer no mundo pelo resultado de sua investigação (...) mas deve, antes, criá-lo por si mesma" (7).
Os limites entre teoria e prática determinam os laços entre elas. O exame científico de juízos de valor capta a adequação dos meios aos fins, a probabilidade de atingi-los e suas consequências. Tais passos inscrevem, na ciência, uma crítica técnica, indireta, dos próprios fins: esclarece os pressupostos decisivos da prática, permite aquilatar suas consequências desejáveis ou não, elucida a questão crucial do "custo de atingir um fim desejado em termos da previsível perda de outros valores", preço que não pode ser omitido na deliberação da pessoa que age com responsabilidade(8).
A crítica científica dos meios concatena-se ao problema contrário, aos limites e importância da "atitude prática avaliativa" para o processo heurístico. Básico, aí, é ao método na interpretação dos fenômenos sociais, capaz de apreender os pontos de vista que "tácita ou expressamente, consciente ou inconscientemente", os seleciona, analisa e ordena. A própria concepção do objeto das ciências culturais prende-se a essa tese: "Todo conhecimento reflexivo da efetividade infinita, por um espírito humano finito, repousa no pressuposto tácito de que a cada vez apenas uma parte finita da efetividade pode constituir objeto da apreensão científica e só ela deve ser essencial no sentido de que vale conhecer" (9).
Os critérios dessa seleção levam aos fundamentos das ciências sociais: "(...) cultura é um conceito de valor. A efetividade empírica é cultura para nós porque e enquanto nós a relacionamos com idéias de valor; ela abrange aquelas, e só aquelas, parte essenciais da efetividade que adquirem significado para nós através dessa relação. Uma diminuta parte da efetividade (...) considerada a cada vez torna-se, para nós, colorida por nosso interesse condicionado por idéias-de-valor e só ela tem sentido para nós" (...) O que tem sentido para nós não é (...) descoberto por uma pesquisa dos fatos empíricos destituída de pressuposições; antes, sua determinação é o pressuposto para que se torne objeto de investigação" (10).
Este princípio abre a possibilidade e método do saber sobre os fenômenos sociais: "O pressuposto transcendental das ciências da cultura repousa (...) no fato de sermos seres culturais, com a capacidade e a vontade de tomar posição consciente diante do mundo emprestar-lhe significação" (11). Este a priori funda o conhecimento na subjetividade, envolvendo os processos genéticos e ordenadores -a atribuição de sentido- seja do mundo cultural efetivo, seja da reflexão sobre ele. Desse modo a "objetividade" das ciências sociais se constitui pela referência (e oposição) à estrutura e atos da consciência, mediante a construção de conceitos, do tipo-ideal. Sentido e valor são condições da experiência e do conhecimento culturais.
Em suma, a distinção entre teoria e prática é correlata aos nexos entre elas. O prisma da consciência desdobra e organiza ambas as faces, põe o circuito entre mundo exterior e subjetividade. O sentido permeia objeto e método científico, como a liberdade legisla a prática. Se a liberdade instaura ética e ciência, ela abre o campo da prática ao conhecimento, rege o arbítrio da vontade, tece a concatenação de seus atos. As próprias sínteses cognitivas supõem a liberdade. Não é de modo exterior, mas de modo essencial, que teoria e prática se aliam, em seus rigorosos limites.
Na tese weberiana, não é lícito ao cientista desembaraçar-se da ética, nem ao político responsável esquecer-se da ciência, banalizando a autonomia da prática, para isentá-la de qualquer inspeção racional de valores e fazer da vontade livre instância discricionária. As posições de Weber apartam-se do pragmatismo cínico, esquecido dos valores que dão sentido à existência, mergulhado no senso comum, useiro e vezeiro das convenções.
Como um simulacro do agente weberiano, FHC recorre à própria glosa da diferença saber-poder, distribuindo os "falo como cientista", daqui, "falo como político" dali. Na verdade, embrulha pressupostos valorativos (neoliberais) com "tendências" empíricas (o atual capitalismo) a partir das quais deduz escolhas políticas (ênfase na exploração do trabalho) e valida decisões éticas (servir aos dominantes e a si mesmo). Se lograsse separar, como diz, saber e prática, não seria uma pessoa, mas um Frankenstein.
Meios inevitáveis para fins propostos, reza a treslida apostila weberiana. Mas que fins? Alvos coletivamente significativos? Tudo é escarnecido na luta pela supremacia insignificante: é patético ouvir Jatene clamar pelo seu imposto enquanto Jereissati absolve a rotina "franciscana" do presidente, alavanca para um domínio cúpido, contente de suas espertas "vitórias".
Ciência, ética ou política, nenhuma cabe nesse estereotipado "realismo". A anos-luz, lampeja o poético aforismo weberiano: "(...) a política bem-sucedida é sempre a 'arte do possível'. Entretanto, o possível é, não raro, alcançado apenas no esforço para colher o impossível que está para além dele" (12). O novo e importante não se produzem mediante uma burocrática adaptação ao possível. Nesse contexto, Weber discute a ação do militante convicto e fiel às suas intenções, pautadas por um "valor intrínseco": é inútil mostrar-lhe que a ordem social bloqueia seus esforços, ou que seus atos protelam as mudanças, dadas as suas certezas.
Face a essa "ética da convicção", Weber define-se: "Não desejo que a Nação seja sistematicamente persuadida, justamente em nome da ciência, a ignorar que, ao lado de um valor instrumental da ação, há também um valor de convicção". Sua reserva política liga-se ao processo heurístico: "O desconhecimento deste estado de coisas é um obstáculo ao conhecimento das realidades". Nesse mesmo contexto coloca-se a tolerância acadêmica: se não cabe ao professor recomendar, da confortável cátedra universitária, tais "catonismos", também dele não se pede o elogio do extremo oposto, considerando um dever acomodar os ideais às tendências existentes e às oportunidades disponíveis (13). A ética de convicção não se exclui da política, imediata ou especulativamente.
No entorno do FHC separa-se convicção e responsabilidade para suprimir os princípios da primeira e magnificar, na segunda, a simples eficácia, de modo tal que orientar-se pelas consequências, numa ponta, equivaleria a abolir os preceitos, na outra. Com tais justificativas da prática, adere-se, sem pejo, à "moral" vigente. Revoga-se a hipocrisia, abona-se a desfaçatez.
Nos estudos de Weber a conduta em que prevalece o mero valor instrumental é regida pela vaidade, paixão por ele vista além dos limites da psicologia, situada no plano antropológico e político. Indaga ele sobre o prazer íntimo que a vida política oferece, discutindo-a a partir de sua caracterização do Estado moderno, definido sociologicamente pelo meio específico que lhe é próprio, a violência física. "A violência não é o meio único ou normal do Estado (...), mas ela é o seu meio específico (...) o Estado contemporâneo (...) reivindica com sucesso, para si, o monopólio da força física legítima (...) passando por ser a única fonte do 'direito' à violência." (14)
Se o Estado monopoliza a violência legítima, como se põe a interioridade do político que detém esse "direito". O sentimento de poder é o mais eminente, a consciência de estar entre os que detêm "um nervo importante do acontecer histórico" (15). O político à altura de tal desempenho define-se pela paixão -o devotamento a uma "causa"- posta a serviço da responsabilidade correlata, associadas ambas ao "golpe de vista", capaz de colher os fatos de modo clamo e distanciado. Paixão e fria distância produzem a "força" de uma personalidade política; a capacidade de domar sua alma com energia a distingue da "excitação estéril" própria diletante.
Nos antípodas da política responsável e consequente surge o contrário da devoção e prudência: "É um inimigo bem trivial, demasiado humano, que o homem político precisa vencer dia-a-dia, hora a hora: a muito vulgar vaidade. Ela é o inimigo mortal de toda dedicação a uma causa, de toda distância, no caso, a distância de si próprio" (16). (idem, 178).
A vaidade é, em essência, antipolítica. Se o desejo de poder é atributo inerente ao político, o pecado capital contra sua vocação "seria uma vontade de potência sem causa (...), apenas pretexto para uma exaltação de si". Mesquinharia, irresponsabilidade, vanglória copulam: "A vaidade, o requisito de colocar-se, no modo mais aparente possível, no primeiro plano, induz com frequência o homem político à tentação de cometer um ou outro desses pecados, ou ambos ao mesmo tempo (...) a míngua de causa o conduz à busca da aparência e brilho do poder (...) a falta de responsabilidade o leva apenas a fruir do poder por si mesmo, sem alvo interno" (17).
Chegamos à epígrafe acima: se o domínio é inerente à política e o desejo de potência é uma de suas molas, "não pode haver caricatura mais ruinosa da política que a do mata-mouros que joga com o poder à maneira de um arrivista ou Narciso vaidoso, em suma, um adorador do poder em si mesmo". Weber atravessa a política em sua exterioridade -o monopólio legítimo da violência pelo Estado- e colhe o interior do político apaixonado e prudente, em síntese, responsável. A contrafação do estadista é uma figura estereotipada, perdida na fatuidade, personagem de comédia.
Não estamos longe, por vias diferentes, da reflexão de Hegel sobre o poder arbitrário, no ocaso de Roma, quando Pompeu e Cesar defrontaram-se tragicamente com idêntica legitimidade, um apoiando-se no Senado, outro no Exército, numa arena onde a força física suplantou a ética. Carente de centro intelectual e de riqueza, com o âmbito político degradando-se no privado, a República encontrou em Cesar a "vontade de um único indivíduo capaz de revigorar o todo". Este "modelo de finalidade romana", apto a decidir com exata "ratio", de modo ativo e prático, sem outra paixão, postergou a destruição da "Civitas" reduzida à soberania do particular e dos medíocres. Morto Cesar, firmou-se a dominação do Um.
Evocando esta página, Marx rebate na figura de Napoleão 1º a imagem do Cesar hegeliano, desde a grande envergadura do personagem até o filistinismo que o aniquilou. E Marx explicita a farsa da repetição histórica, no golpe do pequeno Bonaparte, a burlesca e letal reiteração do passado.
Weber acentua, nas passagens acima referidas, a antropologia entranhada na degradação pública: perpassados pela paixão, os processos políticos não podem nutrir-se da vazia e absurda vaidade. A simples "política do poder, o súbito colapso interior de seus típicos portadores nos permite testemunhar a fraqueza e impotência dissimuladas nos gestos cheios de arrogância, mas perfeitamente vãos. Ela é o produto de uma indiferença soberanamente superficial e medíocre face a todo significado da ação humana; nada tem menos afinidade com a consciência do trágico que se encontra (...) na ação política (...)".
No político weberiano -apaixonado, prudente, criador, responsável- uma ética rigorosa enerva o erótico exercício do poder: "Pode-se em verdade crer que as exigências da ética fiquem indiferentes ao fato de que toda política utiliza, como meio específico, a força, atrás da qual se perfila a violência? (18)". A este núcleo essencial do mando vincula-se a ética da responsabilidade, a exigência de responder pelos próprios atos.
No Brasil, inversões retóricas sustentam a irresponsabilidade política. Grampos no Planalto, pasta rosa, fraudes bancárias, corrupção no atacado? Réus não são os autores dos malefícios, mas quem lhes dá publicidade. Velho oportunismo com apelido "moderno": "ética da responsabilidade".
No presente vale tudo -indigno e corriqueiro- deixe-se em paz os mortos ilustres, que visaram ao inverso do prosaísmo burocrático, colhendo a verdade da poesia, quando "os pontos de vista utilizados tornam-se incertos e o caminho perde-se no crepúsculo. Move-se, ao largo, a luz dos grandes problemas culturais. A ciência também se prepara para repor sua perspectiva e aparato analítico, para contemplar, do alto do pensamento, o fluir do acontecer. Ela segue as estrelas capazes, só elas, de dar sentido e direção a seu trabalho:
'... o novo impulso acorda/ Sigo adiante, a sorver sua luz eterna,/ Frente a mim o dia, sob mim a noite/ O céu sobre mim e sob mim as vagas' " (19)
O Fausto goetheano, o impulso erótico e audacioso rumo ao conhecimento e ao poder, referências de Weber, não poderiam estar mais distantes do quadro rotineiro em que se compraz a vaidade oca e irresponsável. O Fausto de Marlowe, irremediavelmente danado na miudeza, pode figurá-la.
NOTAS: 1. "O Sentido da Neutralidade Axiológica nas Ciências Sociológicas e Econômicas", in "Methodologische Schriften", S. Fischer Verlag, 1968, pág. 241.
2. "A Objetividade do Conhecimento na Ciência e Política Sociais", in op. cit. pág. 12
3. "O Sentido...", pág. 243
4. Op. cit. pág. 245
5. Op. cit. pág. 246
6. Op. cit. pág. 247
7. "Objetividade ..." op. cit. pág. 9
8. Op. cit. pág. 5
9. Op. cit. pág. 24
10. Op. cit. pág. 28
11. Op. cit. pág. 53
12. "O Sentido..." op. cit. pág. 253
13. "O Sentido..." op. cit. pág. 254
14. "A Política como Vocação", in "Gesammelte Politische Scriften", J.C.B. Mohr, 1971, pág. 506
15. Op. cit. pág. 545
16. Op. cit. pág. 546
17. Op. cit. pág. 547
18. Op. cit. pág. 550
19. "Fausto", ato 1, cena 3, cit. por Weber.

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