São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
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Em busca da paz perpétua

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um livro como "Desafios: Ética e Política" pertence àquele gênero difícil de comentar, porque inclui artigos dos mais diversos, de resenhas de Hannah Arendt até um relato da experiência do autor, Celso Lafer, como ministro das Relações Exteriores no governo Collor, passando por uma análise da trajetória política de Antonio Candido e uma conferência sobre a mentira. Mas é justamente essa diversidade de temas que dá o melhor retrato de nosso jurista, filósofo do direito e homem público, salientando os interesses que unificam sua reflexão e prática.
O melhor ponto de partida será -como convém, já que Celso Lafer dirigiu o Itamaraty- a paz. O autor observa com muita razão o fato espantoso de que quase todo o pensamento ocidental pensa a paz como "ausência de guerra" (Hobbes, "Leviatã", capítulo 13). A paz se entende apenas negativamente, a partir da guerra. Esta última é a regra, o princípio, e a paz é sua exceção.
Ora, uma paz negativa é de pouco alcance. Não passa muitas vezes de uma cessação das hostilidades, não ataca as causas do conflito, e por isso mesmo traz no bojo novas guerras (a paz de Versalhes, em 1919). Ou, se funciona um pouco, é na medida em que recorda a paz dos cemitérios.
Metternich, o herói de Kissinger, que o estudou em sua tese, instituiu uma paz desse perfil após o Congresso de Viena. Seu custo foi reprimir os anseios de liberdade. Para não sangrar os corpos, asfixiava os espíritos.
Contra essa linhagem, de uma diplomacia conservadora, Celso Lafer lembra que em hebraico "shalom" (paz) significa plenitude. A paz pode ser a plena realização do ser humano. Aliás, a Igreja Católica pensa assim desde que João 23 retomou a lição dos Evangelhos. Vem-se a conceber a paz a partir da justiça: não é por acaso que têm, ou tiveram, tanto peso na Igreja e na sociedade as Comissões Justiça e Paz.
Para essas mudanças Celso Lafer chama nossa atenção. Larga-se uma diplomacia secreta, de gabinetes, de Antigo Regime, na qual a mentira e a dissimulação eram práticas correntes (a do velho jogo "1914"), por uma "diplomacia aberta", que leve em conta a opinião pública.
Desde que os interesses de cada Estado deixaram de ser sua razão última, perde força o velho modelo das relações internacionais, que foi teorizado por Hugo Grócio, no século 17, e teve na Paz de Vestfália, de 1648, sua melhor expressão: a paz como equilíbrio de interesses em conflito, a paz que subsiste à beira de um ataque de exércitos.
Surge, no lugar da paz que se fazia do ponto de vista dos príncipes, o anseio por uma paz que se institua da perspectiva dos povos. O eixo dessa novidade é a inclusão dos direitos humanos na agenda internacional. É claro que isso limita as soberanias nacionais; desde os processos de Nurembergue contra os nazistas, em 1945-46, nenhum governante tem mais a velha imunidade jurídica para tratar seus súditos como queira.
Em outras palavras, há hoje uma sensibilidade mundial que cada vez mais substitui o termo "súdito" pelo conceito de "cidadão". Uma série de direitos humanos, ligados uns à liberdade (os direitos liberais), outros à igualdade (os direitos sociais, de cunhagem socialista), outros, enfim, à fraternidade (aqueles que o Terceiro Mundo exigiu), tornaram-se essenciais para definir as relações dos homens entre si, inclusive as internacionais.
Assim, para Celso Lafer, a tensão entre soberania popular e direitos humanos -a primeira caracterizando a democracia antiga, a segunda distinguindo a democracia moderna- não chega a constituir uma contradição. Para que alguém participe da assembléia soberana como eleitor (o que define a soberania do povo), é preciso ter reconhecido seus direitos como homem, dos mais formais aos mais concretos.
Eis um dos traços essenciais da reflexão de Celso Lafer: a vontade decidida de fundir o que há de melhor nas diversas tradições, às vezes antagônicas, da política ocidental. Ele mesmo nota, sobre os direitos humanos, que foi praxe cada partido valorizar os seus, em detrimento dos outros. O capitalismo insistia nos direitos individualistas; já o socialismo dito "real" os desqualificava, em favor de direitos menos formais etc.
Ora, sem jamais cair num ecletismo de danosas consequências, para Lafer o fundamental é buscar uma fusão de princípio entre os diversos direitos, ou as várias exigências que uma sociedade complexa, como a moderna, estabelece. Talvez sua convicção seja exatamente esta: a de vivermos num mundo muito complexo, que por isso mesmo requer soluções que não tenham o vício da simplificação.
Assim, seu ideal de política internacional evoca a "paz perpétua" proposta por Kant, proclamando que os homens deverão ser considerados fins, e nunca meios. Talvez, pela primeira vez na história, possamos escapar à dolorosa alternativa entre uma paz obtida à custa de injustiças, e uma justiça procurada até pelos meios mais sangrentos. Essa promissora síntese pode resultar da nova cena mundial, posterior à queda do muro de Berlim: com o fim da bipolarização, um recesso do maniqueísmo abriria caminho a uma paz de conteúdo.
Mas, para isso se realizar, será preciso uma nova relação entre a utopia e a gestão. Aqui está um problema que considero mais agudo, talvez, do que Celso Lafer, mas sobre o qual ele escreve belas páginas.
Pensamos, ambos, que o socialismo, depurado do totalitarismo, tem por trunfo principal a aposta na utopia, enquanto o lado vitorioso na guerra dos dois sistemas econômicos tem por mérito o sucesso na gestão. Assim, chegamos ao paradoxo de uma esquerda ainda rica de fins, mas cuja tecnologia de administração revelou um fiasco (por extrema burocratização), e de um capitalismo que é ótimo gestor mas padece, hoje, uma relativa carência de metas valorativas.
Como, então, fazer que valores que retomam a "liberté, égalité, fraternité" da Revolução Francesa, ou até remontam ao melhor da lição judaica, cristã e greco-romana, sejam capazes de se fazer carne, de se realizar em nosso mundo? Reconhecendo seu débito com Hannah Arendt e Norberto Bobbio, Celso Lafer parece concordar com o mestre italiano que a esquerda é superior, em seus valores, à direita. O que as opõe não é a escolha de uma pela igualdade, e de outra pela liberdade (quem é contra a liberdade são os extremos, direitista e esquerdista), mas a questão só da igualdade, que a esquerda valoriza e de que a direita desconfia -diz Bobbio, em seu recente "Esquerda e Direita".
Mas, ao mesmo tempo, os velhos métodos da esquerda, na melhor das hipóteses burocráticos e centralizadores, na pior totalitários e genocidas, hoje não têm mais eficácia. Uma política que respeite os valores -uma política que seja ética, na qual Lafer acredita- necessita ser eficiente. Isso exige uma nova síntese, entre preocupações que pertenciam a famílias políticas opostas, mas que hoje se mostram, umas e outras, pertinentes. É o que dá -à tarefa, não ao livro- um caráter inacabado: o empreendimento é longo, que poderá culminar na teoria e na prática de uma política ética.
Essa, a aposta difícil. Porque, se a política interna a cada Estado nacional já tende a furtar-se à ética, que dizer da internacional? Mas a convicção de Celso Lafer é que paz e democracia, dentro e fora das nações, se implicam necessariamente. Uma exige a outra. O que significa, para concluir, que ele não entende a democracia só como um procedimento eficaz de resolução de conflitos, mas, antes de mais nada, como um valor, como a tradução política do que é amar o mundo.

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