São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
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O perigo do terrorismo intelectual

ELISABETH ROUDINESCO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na Folha de 25/02 (Mais!), Peter Swales respondeu a meu artigo "Freud pode ser sexualmente transmissível" (de 28/01), em que mostrei como intelectuais exasperados pelo dogmatismo freudiano e pela censura ortodoxa imposta aos arquivos da Biblioteca do Congresso, em Washington, acabaram por transformar em bode expiatório o próprio Freud, acusado de todas as torpezas possíveis numa América perseguida pelo puritanismo e devastada pela exigência de que tudo seja "politicamente correto".
Conheço Swales por seus textos e pelas cartas que me enviou. É um homem gentil, mas renomado por suas extravagâncias, pelos bruscos acessos de raiva e pela mania de "vitimização". Depois de ter sido adorador de Freud, acabou por odiar o objeto de sua paixão a ponto de fazer de seu antigo ídolo um violentador incestuoso, um assassino potencial e um grande patife.
Swales, como ele mesmo disse, me ajudou a procurar documentos na Biblioteca do Congresso em 1992. Em troca, ajudei-lhe a interpretar o significado de algumas cartas para seu trabalho. Mas, depois da publicação de meu livro sobre Lacan, em que lhe fiz um agradecimento, e de "Genealogias" (Ed. Relume Dumará), em que critiquei o revisionismo, ele cismou que eu tinha me tornado sua inimiga e perseguidora. Resolveu então escrever-me uma carta (em 4/11/94), na qual me chamou de "puta" ("bitch", "Lisabitch") e de outros termos tão "afetuosos" quanto.
O leitor deve me perdoar por empregar tais palavras: a verdade exige! Algum tempo depois, Swales se esqueceu de seu acesso de raiva e, com uma doçura infantil, dirigiu-se a mim como se nada tivesse acontecido para reclamar uma nova colaboração. Agora me trata de "vítima estúpida de uma epidemia psíquica" e me acusa de "mentir" e de não ter lido a petição. Bom, começou tudo de novo!
Eu não só li a petição, como ela me foi enviada pessoalmente para que eu a assinasse. É verdade que, em si mesmo, seu conteúdo não é violento. Mas ela foi constantemente acompanhada na imprensa por comentários antifreudianos de uma violência inacreditável que a transformaram em palavra de ordem dos caçadores de bruxas.
A verdade é que Swales, que organizou a petição, desencadeou uma violenta tempestade que se voltou contra ele e contra os signatários, entre os quais se encontram excelentes pesquisadores que hoje devem estar lamentando seu gesto.
Afinal, embora a psicanálise esteja em crise no país em que melhor foi implantada, os que lhe são indiferentes não estão dispostos, como os ultraconservadores e os ultramulticulturalistas, a ver Freud como um diabo sexualmente incorreto. Principalmente porque essa difamação é acompanhada por uma tentativa de abolição do passado e de revisão da história em função de critérios que, apesar de não serem mais os da hagiografia ortodoxa, não deixam de ser menos perigosos.
A crítica fundamentada é necessária, a obstinação em destruir é sinal de uma grande fragilidade da argumentação científica. É por isso que -isso nem sempre acontece- a imprensa toda se mostrou hostil, não à petição propriamente dita, mas ao fenômeno de terrorismo intelectual e de intolerância que a acompanhou e que levou uma instituição pública -a prestigiada Biblioteca do Congresso- a ceder ao que é preciso ser chamado de chantagem de pseudovítimas.
Os peticionários sabem disso muito bem, já que, depois da decisão da Biblioteca do Congresso de adiar a exposição para o outono de 1998, alguns dos mais inteligentes entre eles se puseram a explicar melhor sua posição na imprensa -como Adolf Grnbaum, por exemplo (no "Pittsburg Post Gazette" de 7/1/96)- a fim de não parecerem detratores simplistas do pensamento freudiano.
Pelas mesmas razões, Paul Roazen, que encontrei no dia 18 de janeiro, em Paris, declarou diante de várias testemunhas que lamentava ter assinado a petição e que se deixou "enrolar": são suas palavras. Será que ele ainda mudará de opinião? Será que outros signatários procurarão se explicar de modo mais claro?
Mas por que seria preciso aceitar, em nome da antiortodoxia, as palhaçadas e as injunções condenatórias que não têm mais nada a ver com a verdadeira pesquisa? A esse respeito, acredito que meu artigo, assim como os de vários autores que vão na mesma direção, teve pelo menos o mérito de trazer à luz o problema central desse caso: hoje em dia o antifreudismo primário está tão ultrapassado e tão ridículo quanto o sectarismo psicanalítico do qual ele não deixa de alimentar-se. Já é hora de mudarem.
Devo dizer que uma petição de 160 personalidades do mundo intelectual internacional, nem ortodoxas, nem antifreudianas, será enviada à Biblioteca do Congresso para pedir que as manifestações do centenário da psicanálise não ocorram num clima de medo.

Tradução de Luciana Artacho Penna.

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