São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
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A rede de proteção cosmopolita

A rede cosmopolita compõe um 'arquipélago da imaginação'

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1989, Salman Rushdie, romancista já consagrado, publica "Os Versículos Satânicos". Sob o pretexto de que ele blasfemou contra o Islã, o aiatolá Khomeini o condena à morte.
Quatro anos depois da condenação de Rushdie, que desde então vive na clandestinidade, em junho de 1993, vários escritores e jornalistas são assassinados na Argélia. Face a esses crimes, um grupo de 50 escritores e intelectuais europeus e americanos, apoiando-se numa proposição do sociólogo francês Pierre Bourdieu, propõe a fundação de um parlamento internacional. O apelo é enviado a mais de 200 escritores do mundo inteiro e aceito unanimemente.
Em nome da autonomia da literatura e tendo em vista a necessidade de criar uma estrutura que possa organizar um movimento de solidariedade internacional, o grupo funda, ainda em novembro de 1993, o Parlamento Internacional dos Escritores, presidido por Rushdie.
O mesmo visa a intensificar a consciência dos criadores e a defesa dos interesses comuns; proteger as línguas e as culturas minoritárias ou oprimidas (ensino, acesso à publicação etc), a liberdade de expressão, os instrumentos de produção e difusão (edição, política de tradução) e todas as instituições ligadas aos produtores cultuais. Quanto aos membros do parlamento, eles têm como princípios da sua ação: a independência em relação aos poderes políticos, econômicos, midiáticos e de todas as ortodoxias; o internacionalismo baseado no conhecimento e no reconhecimento da diversidade das tradições históricas.
Por meio de uma rede de cidades-refúgio, o parlamento se solidariza com os escritores ameaçados nos seus países ou condenados ao exílio. Daquela já fazem parte: Almeria (Espanha), Berlim (Alemanha), Caen (França), Estrasburgo (França), Gõteborg (Suécia), Stavanger (Noruega), Valladolid (Espanha), Helsinque (Finlândia), Swansea (Reino Unido) e Veneza (Itália). A adesão de outras cidades, entre as quais Amsterdã, Budapeste, Los Angeles e Viena, está prevista para breve, e São Paulo candidata-se a tanto.
Tendo em vista o desenvolvimento da rede, cuja primeira cidade foi Berlim, abrigo de Taslima Nasreen desde junho de 1995, o Parlamento Internacional dos Escritores e o Congresso Local de Autoridades Regionais da Europa reuniram-se em Estrasburgo no Primeiro Congresso das Cidades-Refúgio.
Aí, tanto estavam representadas as cidades que já dão abrigo a escritores quanto as dispostas a isso porque sabem que a civilização requer a hospitalidade. Sem o abrigo dos Estados Unidos, o que teria sido de Brecht, Thomas Mann, Fritz Lang, Schoenberg, nos anos 30? E, sem a Europa, Soljenitsin acaso teria sobrevivido ao Gulag?
Embora ausente, Derrida, membro do conselho diretor do parlamento, manifestou-se no congresso mediante um texto em que se referia a uma cosmopolítica, implicando uma resposta imediata das cidades ao crime, à violência e à perseguição a que estão sujeitos os criadores de muitos países -Argélia, Irã, Egito, Turquia, Nigéria, China... Uma resposta necessária diante da forma atual da censura, que já não é exercida pelo Estado, e sim por grupos de fanáticos assassinos frequentemente anônimos.
Para escapar a esta censura, que tende a se internacionalizar, é preciso inventar novas formas de hospitalidade, fazer da rede de cidades-refúgio existente um verdadeiro "arquipélago da imaginação". Foi com este intuito que os participantes do Primeiro Congresso das Cidades-Refúgio se reuniram. Além de examinar a possibilidade da criação de uma agência internacional das cidades-refúgio, os critérios de seleção dos escritores, os recursos para a integração jurídica, social e cultural dos mesmos, o congresso apresentou três resoluções:
a) privilegiar o desenvolvimento intensivo e não extensivo da rede, limitando a 20 o número de cidades-refúgio;
b) reduzir a US$ 3.000 a cotização que o Parlamento Internacional dos Escritores receberá da cidade, que assim, além daquela quantia, só desembolsará US$ 2.000 por mês durante um ano para o sustento do escritor, porém tudo fará para divulgar a obra do mesmo e as idéias de liberdade imprescindíveis à criação literária;
c) criar um Observatório da Liberdade de Criação para saber por que a literatura se tornou um alvo privilegiado da intolerância religiosa e para editar obras de grande valor, ainda inéditas, por causa da censura.
Fazer parte da rede custa pouco e significa muito, porque implica a defesa da idéia de cidade aberta e de cidadania multicultural, o que desejava Oswald de Andrade, manifestamente contrário à idéia de nos fecharmos no mapa do Brasil e, como Salman Rushdie, convicto de que os escritores "são os cidadãos de muitos países... e sobretudo da república sem nenhum entrave da língua".

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