São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
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A curiosa história da inconstância ideológica do camarada Paiva

Um dia, o camarada Paiva começou a falhar

BORIS FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A partir de uma certa época, as aulas da Faculdade de Direito, que frequentei nos anos 50, tornaram-se para mim uma grande atração.
Como teria conseguido extrair encanto das falas alternativamente monótonas ou retóricas dos professores, depois reproduzidas em apostilas mambembes, "sem responsabilidade da ilustre cátedra"? A resposta é simples: as falas, fosse qual fosse seu estilo, eram apenas um murmúrio, incapaz de perturbar minhas leituras. Sentado nas últimas fileiras da classe, embarcava no sonho da revolução bolchevique, deformada mas recuperável, por intermédio de "Minha Vida" -a autobiografia de Trotsky- e da "Revolução Traída".
Certo dia, um colega me abordou, perguntando como tinha chegado a essas leituras e se surpreendeu quando eu disse ter sido o resultado de uma intuição anti-stalinista, combinada com o costume de desencavar livros poeirentos, nos sebos do centro da cidade.
Nunca tinha reparado no colega, que não se destacava por qualquer das qualidades mais caras aos alunos das Arcadas, naquela época. Não participava dos concursos de oratória, em que se dissertava sobre lemas do gênero "abrir escolas é fechar prisões"; não se deixava ficar no pátio, comentando o traseiro das raras estudantes; não era dado ao prazer de pôr fogo na ponta do jornal de um aluno distraído na leitura, para vê-lo alguns minutos depois sacudir apavorado o pequeno bólido em chamas.
Seu tipo físico, suas maneiras e roupas também não impressionavam. Baixinho, precocemente calvo, falava manso e usava ternos que escorriam pelo corpo, de dimensões limitadas. Entretanto, se alguém prestasse atenção na sua figura, teria percebido dois olhos claros muito vivos compondo, com o sorriso, um ar de certo ceticismo irônico.
Como viria a saber depois, ele provinha de uma família da baixa classe média do interior, setor social que, ao lado dos filhos de imigrantes, estava invadindo avassaladoramente os bancos escolares de um dos últimos redutos da oligarquia paulista.
Além de frequentar a faculdade, o colega arranjara um emprego como funcionário da Câmara Municipal, situada em um prédio vetusto -o Palacete Prestes-, na rua Líbero Badaró. Se alguém quisesse encontrá-lo, devia ir a qualquer outro lugar, menos ali. Reproduzia, no local de trabalho, uma técnica-padrão bastante conhecida, para que sua ausência não desse na vista. Passava pela Câmara, deixava o paletó no espaldar da cadeira, estampando assim as marcas de sua presença na repartição. Se alguém duvidava, um cúmplice solícito respondia sem vacilar: "Ele está na casa, olha o paletó aí".
Ao me abordar na faculdade, depois de alguns rodeios, o colega não só revelou conhecimento da literatura de esquerda, como me informou, naturalmente à meia-voz, da existência de um Partido Operário Revolucionário, o POR trotskista, a cuja direção -"noblesse oblige"- ele gostaria de me apresentar. Foi além, me segredando, em uma prova de confiança e de iniciação, que não era um fulano de tal qualquer, por escolha pequeno-burguesa dos pais, e sim o camarada Paiva.
Posso atestar que, na militância, o camarada Paiva foi sempre realista, dando a impressão de um certo distanciamento, em sua adesão a um "grupo portador da verdade histórica", à espera apenas da crise do stalinismo para se pôr à cabeça da classe operária. Era sereno nas suas ponderações e, via Câmara Municipal, conseguia alguns contatos significativos.
Organizou em seu apartamento um encontro dos trotskistas com Jânio Quadros, candidato a prefeito de São Paulo, no curso da campanha do "tostão contra o milhão". Jânio começava sua escalada, buscando votos onde quer que se encontrassem. O homem da vassoura falou horrores do Dops e da repressão política em geral, como convinha naquela roda, e nos mostrou também um relógio de ouro, que lhe havia sido dado por um centro espírita com uma calorosa dedicatória, ironizando os doadores: "Imaginem se os espíritas me vissem entrando em entendimento com vocês?".
Um belo dia, o camarada Paiva, pontual nos horários e correto no cumprimento das tarefas, começou a falhar. Chegava tarde aos encontros, marcados geralmente para a porta do cine Metro e depois passou simplesmente a não aparecer. Para exasperação dos companheiros, negava-se a reconhecer divergências ideológicas que dariam margem a infinitas e gratificantes discussões, na visão da militância.
O camarada Paiva afirmava não estar acontecendo crise alguma. Um dia tivera coisas demais para fazer e só se lembrara do encontro já muito tarde, lamentando demais o ocorrido; em outra ocasião, vinha pela avenida São João quando, a poucos quarteirões do ponto, se sentira mal. A muito custo, dera meia-volta e, por sorte, conseguira chegar em casa.
Nas reuniões da direção trotskista, as conjecturas sobre o caso do camarada Paiva se multiplicavam. Quem sabe não estaria envolvido com mulheres? Quem sabe teria algum problema psicológico? A causa real daquele comportamento estranho foi encontrada pelo camarada Andrade que, com seu sotaque caipira e olhar bovino diagnosticou: "Precisamos aconselhar o Paiva a tomar 'Phymatosan'±".
O certo é que o Paiva não tomou "Phymatosan" -mesmo porque sua memória era excelente- e venceu-nos pelo cansaço. Os camaradas passavam horas à porta de seu apartamento modesto, pelos lados da rua 25 de Março, tentando inutilmente surpreendê-lo, na entrada e na saída. Sem ter a qualidade dos oficiais de justiça ou dos cobradores de dívidas, acabaram desistindo. E ele pôde sair de manso do grupo, evitando uma penosa discussão.
Tudo isso ocorreu antes de 1964. O golpe propiciou-me um contato com o Paiva, já não mais camarada, depois de alguns anos sem vê-lo. Apesar de ser, como ele, um ex-camarada, fui chamado a depor em um IPM montado pelo Exército, em Quitaúna. Lá, o coronel encarregado da peça inquisitorial, depois de inúmeras perguntas, observou com ar de desprezo que os subversivos não tinham qualquer escrúpulo, envolvendo até pessoas inocentes e de prestígio. Pois não é que tinham conseguido a fiança de um advogado da Câmara Municipal, o doutor Fulano de Tal, para alugar uma sala no prédio Martinelli, a pretexto de organizar um círculo de discussões literárias?
Acho que prestei ao Paiva um serviço. O relato deve ter sido um teste. Diante da minha total indiferença àquela narrativa, o atilado coronel -hoje dá para brincar-, deve ter concluído que as explicações do causídico eram verdadeiras. Voltei de Quitaúna com uma imensa inveja do camarada Paiva, tanto mais que, apesar de ser também advogado e de vestir um terno azul-marinho bem passado, o coronel acabou me convertendo de testemunha em indiciado.
Seja como for, foi necessário acertar os ponteiros com o Paiva para harmonizar novos e eventuais depoimentos. Fui ao seu encontro na Câmara Municipal, aí por maio de 1964. Na lanchonete do prédio, em meio ao ruído das xícaras e dos auto-falantes que transmitiam a gritaria retórica do plenário, conferimos a coerência de nossas histórias.
Liquidado esse ponto, ele me contou um episódio que mostrava como, longe da militância, ficara ainda mais sensato e pragmático. Um vereador de esquerda viera aconselhar-se com ele a respeito de uma idéia aparentemente salvadora, com o objetivo de garantir seu futuro político. Pensava em pedir a palavra em plenário e fazer um discurso homenageando o comandante do 2º Exército, general Amaury Kruel. O Paiva se espantou não propriamente com a demonstração de oportunismo, mas com a ingenuidade da idéia: "Você vai se sujar com a esquerda e nem por isso vai ficar melhor com a direita", foi sua sábia conclusão. O ilustre edil seguiu o conselho e manteve-se, bravamente, em suas posições históricas.
Esse foi o último contato que tive com o Paiva. Ele estava até meio esquecido na minha memória, quando há alguns dias, passando os olhos pelo necrológio do jornal, dei com a notícia da sua morte. A notícia me intrigou. Quem informava o falecimento era a Suprema Ordem de um certo Templo, do qual o Paiva fora Grão-Mestre. A referência a "Grão Mestre" me levou a associar a Ordem às lojas maçônicas, o que me pareceu algo compreensível, na carreira do velho colega. Nessa versão confortante, ele percorrera um percurso histórico racional, embora em sentido contrário, do socialismo à franco-maçonaria.
Logo me dei conta porém que não se tratava da maçonaria e sim de uma entidade religiosa, cujos objetivos me escapam. Na minha ignorância do reino da transcendência, vislumbrei o camarada Paiva paramentado de vestes rituais, queimando incenso, olhos voltados para o infinito.
Por mais que se diga que o socialismo pretende trazer o céu para a terra, não consigo enquadrar a biografia do Paiva nessa dialética da terra e dos céus. Entre o jovem trotskista e o grão-mestre da Ordem, há um buraco que minha imaginação não consegue preencher.
Tive mesmo um impulso de mandar colocar outro anúncio da morte do Paiva, mencionando sua condição de bacharel em direito, procurador municipal e, quem sabe até, de ex-trotskista. Porém, o impulso se foi, tão depressa como veio, pois sua imagem apareceu de surpresa diante de mim, lendo o anúncio publicado. A cabeça estava meio inclinada, com a calva em primeiro plano, mas ainda assim deu para notar nos lábios seu sorriso irônico.

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