São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
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A falsa medida das drogas

Terapias inofensivas podem ter o poder de persuadir

PHIL COHEN
DA "NEW SCIENTIST"

No verão de 1986, equipe de cientistas britânicos topou com um novo e bem-sucedido tratamento para o inchaço doloroso de pessoas que passaram por cirurgia para retirar um dente do ciso.
Tratava-se de massagear as faces dos pacientes com uma sonda de ultra-sonografia. Os resultados foram espantosos: o inchaço diminuiu em 35% em comparação com o grupo de controle.
Sem que os pacientes e o cirurgião-dentista soubessem, os pesquisadores haviam preparado o aparelho para parecer que estava ligado, quando estava desligado.
A equipe do University College e da Escola de Medicina de Middlesex concluiu que havia testemunhado um forte exemplo do poder da persuasão médica.
A ética obriga os médicos a não enganar seus pacientes. Mas, se os pacientes soubessem que estavam recebendo placebo (substância ou tratamento inofensivo), o efeito benéfico não seria anulado?
O psicólogo australiano Nicholas Voudouris, da Universidade La Trobe, diz ter uma solução para o dilema ético. Ele mostrou que voluntários podem ser poupados de boa parte da dor de uma série de pequenos choques elétricos se forem tratados com um "falso" creme anestésico para a pele.
O espantoso é que o truque funciona mesmo quando os voluntários sabem que o creme é falso. O truque seria, em primeiro lugar, treinar os voluntários a associar o creme ao alívio da dor.
Se tudo correr bem, por volta do Natal, Voudouris e Milton Cohen, reumatologista do Hospital Escocês em Sydney (Austrália), planejam testar estratégia semelhante de condicionamento em pacientes reais, que sofrem todo tipo de dor.
Eles receberão comprimidos de placebo misturados com suas doses frequentes de fortes analgésicos opiáceos. "Quando você tem menos drogas, você tem menos dos efeitos colaterais nocivos que as acompanham", diz Voudouris. Outro efeito benéfico deverá ser o barateamento dos tratamentos.
Mas os médicos são oficialmente proibidos de usar placebos, exceto com seus pacientes particulares e em testes. Embora muitos médicos admitam extra-oficialmente usar injeções ou comprimidos falsos, isso acontece porque acreditam, erroneamente, que os placebos funcionam para expor as queixas de um paciente como imaginárias.
Segundo Voudouris e Cohen, embora os mecanismos exatos pelos quais um falso medicamento consegue enganar o corpo humano a ponto de ele se curar ainda sejam desconhecidos, isso não é razão para deixar de fazer pesquisas clínicas com placebos.
Longe disso. Tudo que é preciso para começar a desenvolver placebos como instrumentos clínicos, dizem eles, é uma lição tirada de Pavlov e seus cães salivantes.
Ele conseguiu que os cães reagissem ao tilintar de um sino como se fosse a droga morfina.
Hoje, ratos e cães de laboratório reagem a injeções de água salgada ou de comprimidos de açúcar como se tivessem recebido toda espécie de remédio potente ou tóxico.
Os seres humanos não reagem a placebos por qualquer condicionamento deliberado. Segundo Voudouris, reagem por causa do condicionamento incidental de toda uma vida. Cada vez que você engole uma aspirina você fortalece a associação entre "comprimido branco" e "sentir-se melhor". Todos têm condicionamentos ligeiramente diferentes.
Isso talvez explique a cautela inerente a qualquer tentativa de controlar o placebo: o fato de que as reações são notoriamente inconstantes, ocorrendo em entre 0% e 100% dos pacientes.
A escolha do momento certo é crucial. Se um paciente receber injeções de placebo uma semana e injeções de morfina real na outra, o condicionamento funcionará para eliminar parte ou todo o efeito da droga real. Mas basta reverter a ordem e as injeções de placebo surtirão efeitos da morfina. "É fácil eliminar a droga", observa Voudouris, "mas não é fácil eliminar seus efeitos condicionantes".
Em primeiro lugar há o problema do logro a ser resolvido. O que os médicos dizem a seus pacientes pode fazer toda a diferença entre o êxito e o fracasso. Como fazer um placebo funcionar? Mais uma vez, Voudouris acha que a resposta consiste no condicionamento. Os médicos podem ser francos em relação ao uso do placebo, diz ele, desde que também se dêem ao trabalho de condicionar os pacientes a reagir aos tratamentos.
Sua evidência vem de alguns estudantes cobaias, em quem aplicou choques elétricos moderados com eletrodos fixados em seus antebraços.
Para condicionar os estudantes, Voudouris e seus colegas aplicaram um creme dermatológico cor-de-rosa comum, porém com cheiro de remédio, nos braços dos estudantes, antes de ligarem a corrente. A um grupo foi dito que o creme era um analgésico potente e, a outro, que era apenas um placebo. O que nenhum dos sujeitos sabia, entretanto, era que durante a sessão de condicionamento os pesquisadores estavam reduzindo a corrente elétrica à metade do nível anterior, toda vez que o creme era aplicado.
O objetivo do exercício era "ensinar" aos sujeitos, por meio da experiência, que o creme abrandava a dor. E funcionou. Quando a corrente foi aumentada para o nível anterior, os sujeitos relataram até 80% menos dor quando o creme era aplicado -mesmo os estudantes aos quais havia sido dito que o creme não teria efeito analgésico.
Essa experiência provavelmente não teria dado certo se os pesquisadores não tivessem ocultado o fato de que a corrente elétrica estava sendo reduzida à metade durante a fase do condicionamento. Mas, diz Voudouris, ela estabelece um princípio importante: o de que é possível admitir que se está usando um placebo sem destruir seu poder.
O passo seguinte, testar o poder do condicionamento com pacientes reais, não envolverá qualquer enganação. Muito pelo contrário: Voudouris e seus colegas serão totalmente francos com os cerca de 60 pacientes que sofrem de artrite, dores nas costas e outros males, que concordarem em tomar parte no teste clínico. Eles assinarão um contrato de tratamento, explicando que às vezes será ministrado um placebo aos pacientes no lugar do analgésico que comumente utilizam, que na maioria dos casos será morfina ou um derivado dela. Mas antes de qualquer mudança para placebo acontecer, os pacientes passarão semanas recebendo o remédio real.
Essa última condição, entretanto, pode ser mais difícil de cumprir do que parece. "Vai ser difícil manter médicos e pacientes na ignorância por muito tempo, especialmente se os medicamentos usados tiverem efeitos colaterais fortes e reconhecíveis", avisa Charles Weijer, médico que estuda a ética e ciência dos placebos na Universidade McGill, em Montreal.
E Voudouris não está facilitando as coisas para si próprio. Os doentes que sofrem dor crônica são por definição aqueles que a medicina não foi capaz de curar permanentemente. Assim, seu condicionamento incidental, antes mesmo de os testes começarem, já diz aos pacientes que todos os medicamentos falham, em última análise.
Voudouris admite que ninguém sabe ao certo se tais obstáculos poderão ser superados com sua terapia. "Estamos entrando em território que nunca foi mapeado", diz ele. "Com certeza vamos topar com muitos problemas".
Weijerr acredita que Voudouris conseguiu evitar boa parte do atoleiro moral. Para começo de conversa, o objetivo do australiano não é trocar tratamentos efetivos por placebos, mas misturar as duas coisas. "Ninguém vai mentir aos pacientes, e é possível que se beneficiem", diz Weijer.
Voudouris iria mais longe ainda, e viraria o argumento ético de ponta-cabeça. Se os placebos realmente funcionarem e os pacientes receberem os mesmos benefícios em troca de menos dinheiro e com doses menores de medicamentos prejudiciais à saúde, diz ele, é possível que um dia passe a ser considerado anti-ético deixar de usar placebos.

Tradução de Clara Allain

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