São Paulo, domingo, 7 de abril de 1996
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Dorival Caymmi

"Minha preguiça é necessária"
texto Alessandra Blanco

ALESSANDRA BLANCO
FOTO LUCIANA WHITAKER

"Obrigado Senhor, muito obrigado pelo dia, pelo batom de Marilu, porque ela teve gosto na escolha da cor..." É assim que Dorival Caymmi começa o seu dia, logo depois do nascer do sol, olhando pela janela do apartamento em Copacabana as mulheres que já passam pela rua.
Foi apresentado à sua "Oração da Manhã" por um amigo e até hoje não sabe quem é o verdadeiro autor. Ainda assim, resolveu adotá-la como parte de seu ritual.
Depois dela, costuma ficar longo tempo em silêncio, parado, até que a mulher e os empregados acordem para o café da manhã. É a preguiça Dorival Caymmi. A "preguiça necessária", como diz.
Para quem sempre prezou "uma certa vagabundagem", até para garantir uma boa qualidade musical, Dorival Caymmi usa ainda mais a "fama" de preguiçoso para manter longe quem considera desagradável. Perto dos 82 anos, que completa no próximo dia 30, tenta ficar a maior parte do dia como gosta: parado num canto, calado.
No resto do tempo, lê um pouco, ouve música, passa os olhos pela televisão, fica horas na janela, vendo o movimento, fala ao telefone e, quando bem disposto, caminha até a praia a duas quadras do seu apartamento.
Nesses dias, se diverte com a "nova geração", que já não reconhece seu nome e, segundo ele, está entrando na sua "tranquilidade", já não sabe quem ele é. Mas se aborrece com os tapinhas nas costas que sempre acompanham o trecho de uma música que não é sua.
Dorival Caymmi tem hoje horário para tudo: se levanta com o nascer do sol, almoça às 13h, faz um lanche às 15h30 e janta às 18h30. Não compõe mais. A última música fez, sem querer, no dia 8 de março de 1991, a exatos cinco anos desta entrevista, enquanto recebia a visita de uma parente. Às vezes, pensa em alguma nova canção, mas guarda na memória para algum dia tocar.
O compositor
No seu currículo, guarda menos de cem músicas. "Não importa a quantidade", diz. "Sempre procurei o espontâneo, aquilo que o povo vai gostar, com frases bonitas, sem o excesso de 'olhar', 'você', que tornam a canção enjoativa. Não é preciso ter uma obra enorme para servir de citação."
Caymmi nunca foi daqueles que deixam o violão sempre por perto para o caso de surgir a "inspiração". Sempre teve um jeito muito particular de compor. Como costuma dizer, "junta tudo em um compacto" de voz, canto, instrumento e expressão. É por isso que, quando lhe perguntam sobre quem mais gosta de ouvir interpretar suas canções, tem só uma resposta: "de mim mesmo".
Nos próximos dias 11 e 13 de abril, Dorival Caymmi vai voltar aos palcos, no Rio e em São Paulo, para o Heineken Concerts 96, ao lado do filho Dori Caymmi e de Gal Costa. Seu último show aconteceu em agosto do ano passado, na Bahia, na comemoração dos 50 anos da construtora Odebrecht, também ao lado dos filhos. Ultimamente, tem sido assim.
Ainda gosta de fazer shows e até gostaria de "ter maior disponibilidade", mas sua tendência é recusar todos os convites e só atender ao pedido dos filhos.
Não gosta mais de fazer tantas viagens. Prefere cuidar dos afazeres domésticos, passar a maior parte dos dias à beira-mar, em sua casa em Rio das Ostras, no litoral do Estado do Rio, e, pelo menos dois meses por ano, na Bahia, para matar as saudades.
Até mesmo os amigos cansam Caymmi. "Não tenho mais idade para fazer muita amizade. Em 1974, baixei uma portaria que dizia 'fechado para novas amizades', depois revoguei. Mas cansa", diz. Todo o seu tempo de "lazer", gasta apenas com a mulher, os filhos e os netos. "Só assim tenho conseguido manter um casamento de 56 anos."
Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Dorival Caymmi para a Revista da Folha.

Preguiça
No sentido exato da preguiça necessária, sou preguiçoso. A preguiça necessária é quando você tira proveito de se dizer preguiçoso para não perder tempo com bobagem. Às vezes, você pega um camarada com uma conversa que não está interessando e você é obrigado a fazer uma cerimônia, uma cara falsa e eu não sirvo para esse modelo. Nessa hora, a preguiça é necessária. É condenada, é pecado, eu sei. Mas, reparando bem, quando você diz assim: 'Essa é uma boa hora para não fazer nada', é uma boa preguiça. A cabeça está funcionando e eu aprendi também -apesar de parecer que sou um falastrão- a ficar calado um certo tempo do dia, me poupando da conversa, de forma que sempre deu um aspecto daquele que não faz nada. Isso é assim: 'O que é que Dorival faz?' 'Nada, é assim, fica parado ali, pega um livro, um lápis, você não ouve nem a fala dele.' Isso é lembrança que vem desde a infância. Mamãe dizia assim: 'Onde é que esse menino se meteu?' E eu estava no quarto, desenhando, fazia um versinho, uma poesia. A preguiça, neste sentido, existe e é necessária. Quando você diz 'estou com preguiça', você mesmo se dá o direito de dizer: 'Vou fugir daqui, sentar num canto e ninguém vai me perguntar nada'. As pessoas já pensam: 'Não fale muito com esse aí porque é um preguiçoso'. É ótimo. Talvez, se não fosse preguiçoso, teria produzido mais. Quando cheguei à vida profissional, uma das razões que levava o sujeito a se promover era dizer quantas músicas tinha gravado. Mas quem dá crédito e sucesso é o povo. Então, me acostumei a fazer uma música, cantar para mim e gostar. Depois, pegar aquela música e cantar para o povo. Não precisa ter uma obra enorme só para servir de citação. O importante é a qualidade. Sem pretensão, sem máscara, nunca fiz questão da quantidade. Procurei sempre o espontâneo, aquilo que o povo gosta, o que é bonito de dizer. Fazer uma coisa amorosa, bonita, procurar direito as frases. O enjoativo de música é quando se vê que tem muito 'olhar', muito 'você', é a repetição. Uma certa vagabundagem faz bem. Sem essa vagabundagem não sai.

Sedução
Vou dizer uma coisa: a virtude não é minha. Na verdade, existe uma ação do homem à procura do sexo oposto. Há a tentação da mulher nas diferenças de tipo, cara, corpo, cor, tudo. Mas a mulher também tem um poder de sedução terrível, tem mais poder do que o homem. Confesso, sempre gostei do sexo oposto, sempre achei a mulher a perfeição, tem cheiro próprio, maciez. Mulher tem tudo. Sempre fui um apaixonado, mas as mulheres seduziam mais a mim do que eu a elas. A mulher vai lá, escolhe aquele que quer e ganha. Tem muito homem que quebra a cara. Não sou sedutor, fui seduzido e não tenho a menor queixa.

Tom Jobim
A morte de Tom tem que ser levada como a expressão mais simples do decorrer da vida. Nasce-se e morre-se. Eu nunca poderia admitir a morte de Tom Jobim e tive que engolir seco e me preparar para isso durante anos. Em 1965, o Tom já estava se queixando de doença. Ele foi ao médico, estava fumando em excesso, comendo errado. Naquela época, eu estava com gota. Os dois doentes. Em Los Angeles, eu chegava na casa dele e a mulher dele, Teresa, me olhava e falava: 'Ainda tá capengando, Caymmi?' Um dia, ouvi uma coisa que me envergonhou muito. Eu saía do prédio de Tom, estava silêncio e ouvi Teresa dizer: 'Eu vou escrever para Stella e dizer que Caymmi está levando uma vida errada aqui'. Eu bebia, já tinha deixado de fumar, mas bebia e a gota sentia. Tenho um respeito pela mulher tão profundo que isso me tocou e tomei vergonha na cara. Respeito muito a Teresa. De modo que, se Teresa está viva, Tom ainda está um pouco vivo nela e, se Ana Lontra, a última mulher de Tom, está viva, e vi pelos olhos dela que ele a amou muito, Tom está vivo também nela. Às vezes, quando sinto muita saudade, coloco um disco dele para ouvir.

Bahia
Voltar a morar na Bahia? É uma pergunta que eu não gostaria de responder. Gostaria sim, mas é trabalhoso morar na Bahia hoje. Gostaria da Bahia de sonho. Às vezes, nos lugares que vou, não posso passar porque tem muito veículo, tem muita coisa, está diferente. Para ser sincero, no fundo todos nós temos uma raiz no lugar em que nascemos. O paulistano deve ter um lugar bem moderninho que está ligado a ele. Ninguém escapa disso. Sinceramente, deixei de ter essa de 'vou me preparar para voltar para a minha terra'.

Amizades
Tem muita gente querendo armar uma entrevista em parceira comigo e Caetano Veloso, mas não quero fazer. Fiz uma com Gilberto Gil porque não sabia que se tratava disso. Ele mandou a Gilda Matoso me roubar aqui em casa. Pensei que fosse algo mais profissional, mas, quando cheguei, era o estúdio dele com tudo armado para me mostrar uma música chamada Buda Nagô, que fez para me agradar. Não tenho mais idade para fazer muita amizade. Em 1974, baixei uma portaria que dizia 'fechado para novas amizades'. Depois, tive que rasgar esse documento mental porque ainda dava tempo para fazer algumas amizades, mas cansa. Você tem que se distribuir em responder coisas e agradar, tem que puxar pela memória, se preparar, se adornar, estar sujeito a viagens de emergência e tudo isso é uma canseira que leva a pensar: 'Sabe de uma coisa? Quando você vai para casa é para ficar sozinho, ver a mulher, olhar para a criança e só.'

Influências
Não preciso ter influência de ninguém. De quem Tom teve influência para fazer 'Samba de uma Nota Só'? Como é que uma obra-prima nasce de uma gozação de fim de noite com um amigo que achou engraçado? Ninguém deve fugir de ter aquilo que lhe é particular. Você faz uma canção com o passarinho, aquela mulher passeando na rua, a outra que parou. Já andei desenhando mulheres conversando na feira. Gosto disso. Ela fala, põe as mãos nas cadeiras. Sou janeleiro. As músicas saem desse contato.

Dia-a-dia
Já fui melhor leitor de jornal e melhor caminhador na praia. Hoje tem muita gente. Às vezes, ainda saio para passear, mas aí vem um sujeito, bate nas minhas costas e diz: 'Eh, vento que balança'. E a música não é minha, aí não tem graça. Ou então, falo para um jovem: 'Sou Caymmi'. Ele diz: 'Quem?' E eu: 'Dorival Caymmi'. Aí ele pergunta: 'Como é mesmo o nome?' Então digo: 'Esse já entrou na minha tranquilidade'. Não está me conhecendo. É ótimo.

Mar
Deixei de entrar no mar porque o mar que escolhemos há 20 e poucos anos era deserto e tranquilo, um lugar interiorano: Rio das Ostras. Agora não dá mais. Tem gente de todo lugar, fica sujo no verão. Temos que ir cedo para caminhar e voltar até as 7h30, pelo menos para me deixar satisfeito.

Poltrona
Com relação à minha poltrona com o ventilador na frente, Caetano Veloso fez a imagem que quis. Ele falou isso quando eu estava perto dos 80 anos. Então, se presume que é uma idade em que a pessoa fica mais em casa e, se está calor, por que não ligar o ventilador? A preguiça é uma condição humana. Como se justificaria o bocejo, essa coisa tão linda, tão gostosa, se não houvesse a necessidade do repouso, do 'sooono'? Que beleza! E nada tira o prazer de você acordar e se espreguiçar porque amanheceu.

Jornalismo
Se não fosse músico seria jornalista. Eu gosto. Meu primeiro emprego foi em um jornal, aos 16 anos, meu pai queria me tirar da vagabundagem. No Rio, o que me manteve sem a ajuda dos pais foi o jornal. Conheci amigos no bar e eles me chamavam para escrever artigos sobre música.

Mulher
O futuro do país está nas mãos da mulher. É a única que tem tolerância para aguentar por nove meses na barriga um produto que não é dela. Então, tem o poder da tolerância para tudo.

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