São Paulo, quarta-feira, 10 de abril de 1996
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"O Samurai" articula jogo de enganos

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Quem for ver "Os Suspeitos", filme que ganhou os Oscars de melhor roteiro original e de melhor ator coadjuvante (Kevin Spacey) este ano, e comparar com "O Samurai", policial de 1968, talvez acabe convencido de que o cinema está mesmo em franca decadência.
Existe muito mais inventividade na história de Jef Costello (Alain Delon), assassino de aluguel que, após matar o dono de um night club, é convocado para ir à polícia.
Costello preparou o que se pode chamar de álibi perfeito. Tão perfeito que não convence o delegado (François Perrier). Mesmo liberado, é traído pelos mandantes do crime, que tentam matá-lo (e, de passagem, não pagam o que lhe era devido). A história vai por aí, surpreendente a cada minuto.
Apesar das surpresas, é possível que o filme de Jean-Pierre Melville não agrade a muitos espectadores dos anos 90. É um trabalho característico dos anos 60: não se embaraça em tomar seu tempo, não se acanha de colocar questões existenciais à frente dos lances policiais propriamente ditos.
Já o título é sintomático dessa opção. O que leva a identificar o matador Costello a um samurai é a solidão que, já na epígrafe, atribui-se aos guerreiros japoneses.
Se o samurai deve seguir cegamente o seu senhor, o mesmo se dá com o pistoleiro de aluguel. Ele abdica da existência subjetiva em favor de sua posição no mundo. Existe para matar e ponto.
A partir dessa constatação, Melville realiza um filme de silêncios e ausências. Alain Delon tem um rosto impassível. Na época se disse que seu olhar glacial e a aparente ausência de interpretação o credenciavam como único ator capaz de fazer o papel.
Visto hoje, o filme faz pensar também no Clint Eastwood dos faroestes de Sergio Leone. Ele teria, como vantagem, uma beleza menos ostensiva que a de Delon.
Esse é um detalhe secundário. Para quem não esperar um filme de ação contínua, "O Samurai" reservará, além de um roteiro cheio de vitalidade (escrito pelo próprio Melville), tanto uma construção admirável da idéia de solidão como um tom reflexivo que se contrabandeia sob o rótulo de filme policial.
Ela está no apartamento de Costello, nas relações com a namorada (Nathalie Delon), na maneira áspera como a cidade (Paris, no caso) aparece a seus olhos, na incerteza que se infiltra em cada cena, como se devêssemos experimentar a mesma incerteza das coisas que os personagens experimentam o tempo todo.
O essencial, no entanto, é o jogo de enganos que Jean-Pierre Melville articula. Isso é que distingue um policial qualquer de um filme de mestre. Aqui, estamos francamente no segundo caso.
Ele nos joga no "bas-fond" parisiense, mas seu interesse central não é o ambiente que ali se pode encontrar (descrito admiravelmente, de resto).
É, sim, a certeza de que nenhum homem controla seu destino. Todo o jogo que se arma baseia-se na polaridade entre o homem ausente (o matador) e o presente (o policial). Essa polaridade se mostrará falsa ou, em todo caso, inútil.
O desenvolvimento e a solução da trama passarão ao largo da vontade de cada um deles. Como se o "em si" de cada personagem registrasse um deslocamento. Como se a epígrafe do filme também pudesse ser a célebre frase de Rimbaud, o poeta: "Eu é um outro".
Nesse conjunto admirável, dois momentos sobressaem-se. O primeiro é a sequência de perseguição a Costello pelo metrô de Paris, monitorada pelo delegado. O segundo é a sequência final (que, pelo enigma que encerra, convém não comentar).
"O Samurai" pode não ser um policial para quem pretende apenas se divertir. Mas é, certamente, para quem gosta de cinema.

Filme: O Samurai
Produção: França, 1967, 95 min.
Direção: Jean-Pierre Melville
Com: Alain Delon, François Perrier, Nathalie Delon
Lançamento: Luna Vídeo (tel. 0 800 16-0233)

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