São Paulo, quarta-feira, 10 de abril de 1996
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A imprensa e os danos morais

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

O projeto de lei nº 3.232/92, cujo substitutivo acaba de ser aprovado pela Câmara dos Deputados, objetivando regular a liberdade de imprensa, cria indenizações por dano moral de tal envergadura que podem representar, se adotadas, o fim dos veículos de comunicação que vierem a ser condenados.
Admitindo para cada caso uma indenização de até 10% do faturamento obtido no ano civil da condenação, que poderia ser acrescida de 50% se o faturamento estiver entre R$ 5 milhões e R$ 20 milhões ou de 100% se superior, tal dispositivo (artigo 23 do projeto), se aplicado, em um ano, a dez casos, terminará por transferir aos beneficiários das ações a totalidade da receita empresarial.
A gravidade maior do projeto reside no fato de que, a título de garantir a liberdade de imprensa (começa dizendo o projeto que "Dispõe sobre a liberdade de imprensa"), conforma restrições de tal ordem que rara será a notícia não suscetível de gerar ação por danos morais, em face da autêntica "indústria" que se está criando no país para "remuneração" do "pretium doloris", ou seja o "preço da dor" que o "desonrado" sofre.
Há casos noticiados no Estado do Maranhão em que, por mera devolução de um cheque, cujo titular tinha fundos, obteve o "ofendido" do "ofensor" -em sentença e acórdão datilografados, segundo também noticiado pela imprensa, na mesma máquina em que foi datilografada a petição inicial- alguns milhões de dólares de indenização. E hoje qualquer assunto é objeto de ações por dano moral, como se a "honra" tivesse preço e devesse ser restabelecida não por um gesto de dignidade, mas por um punhado de reais.
A indústria que se tem formado é tanto mais grave, pois o "ofendido" nunca estabelece o "quantum" que está pretendendo, pedindo que sua "dor moral" seja avaliada pelo juiz, com o que, se derrotado, salva-se da condenação em "honorária" elevada e, se vitorioso, não só recebe ele, do "agressor", o equivalente pecuniário à sua honra como seu advogado embolsa expressivos honorários.
Em outras palavras: o ofendido diz ao juiz: "Estou sofrendo, mas não sei o quanto em 'reais' vale o meu sofrimento, devendo V.Exa. quantificá-lo para que quem me desonrou pague segundo essa avaliação. Embora seja eu que sofra, é o senhor que deve dizer o quanto estou sofrendo".
O estratagema demonstra a irresponsabilidade com que a matéria vem sendo levada aos tribunais, sempre colocando o "ofendido" em posição de absoluta vantagem processual e sem riscos e o "ofensor" em total desvantagem, correndo todos os riscos nas ações por danos morais.
Bancos, médicos, laboratórios têm sido acionados por ofensas morais em devoluções de cheques, nas cirurgias cujos cortes sejam um pouco maiores que os habituais (prejudicando a exibição, pelas praias, da "nudez protegida por alguns fiapos visíveis só de perto"), nos testes de HIV que surgem com o "falso positivo" e num elenco interminável de pretendidos danos morais.
Tenho procurado, em conferências e estudos publicados, alertar sobre a "indústria" irresponsável do dano moral, eis que a má-fé do litigante, a meu ver, é demonstrada se o ofendido deixa de estabelecer, de início, o "quantum" que pretende receber, para não correr o risco da "sucumbência", se derrotado.
Quem quer lavar a "honra" com dinheiro, mas não tem a firmeza de quantificar a reparação da ofensa, não está querendo lavá-la, mas fazer um bom negócio.
Ora, nesse quadro que se está formando, de discussão dos danos morais no país, um projeto de lei que objetiva punir tão severamente os veículos de comunicação fere duramente a liberdade de imprensa, praticamente inviabilizando qualquer informação, qualquer furo de reportagem, visto que tudo será objeto de ações por dano moral -desde o "adjetivo" malcolocado ao classificar determinada pessoa até o simples noticiário de fatos delituosos ou supostamente delituosos na imprensa.
Uma autêntica espada de Damócles incidirá permanentemente sobre a cabeça dos jornalistas e dos jornais, com fantástica redução de sua liberdade de informação ou de análise dos fatos.
Ora, se a Constituição, em seu artigo 220, garante a liberdade de imprensa, dizendo que não pode sofrer "qualquer restrição", não há porque impor penalidades por dano moral absolutamente insuportáveis, a título de regular o artigo 5º, inciso V do texto supremo.
Com isso não só se elimina a liberdade de imprensa como se alimenta uma indústria que se fortalecerá na medida em que tudo puder ser considerado "dano moral" e ações, sem riscos, puderem ser propostas, objetivando negociar a "dor moral".
Para mim, a honra não tem preço. Quem tem verdadeiramente "honra" sabe que não há dinheiro que a pague.
Mas se o projeto de lei pretender regular tal matéria e não gerar negociatas judiciais, que o faça em níveis adequados à liberdade de imprensa e não inviabilizando seu exercício, visto que um país tolhido na liberdade de informar é um país que termina caminhando para o totalitarismo.
Ao ser contra o texto aprovado na Câmara não pretendo defender a irresponsabilidade da notícia e dos jornalistas, que devem ser punidos, mas nunca da forma proposta pelo projeto.

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