São Paulo, quinta-feira, 11 de abril de 1996 |
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Como um feto
MOACYR SCLIAR "Acredite se quiser!", finalizou o locutor, triunfante: acabara de contar a história da mulher e de seu feto mumificado. Com um suspiro, o motorista do táxi desligou o rádio. Lançou o olhar a seu redor -dezenas de carros parados, num daqueles crônicos congestionamentos que já se tornaram a marca registrada das grandes cidades brasileiras- e resmungou:- Numa hora dessas era exatamente isso que eu queria ser: um feto mumificado. Um feto bem velho e mumificado. Eu não disse nada. A experiência me ensinou que, quando as pessoas estão desabafando, nem sempre querem uma resposta, querem é falar. E de fato, logo depois o homem continuou o raciocínio: - Você quer coisa melhor do que ficar na barriga da mãe, sem problema nenhum? Sem congestionamento, sem ameaça de assalto, sem medo de perder o emprego? Você não acha que é a situação ideal? Hein? - Pode ser boa a vida de feto -respondi, cauteloso. - Mas não dura muito. Um dia a pessoa tem de nascer. Ele voltou-se para mim: - Tem de nascer? Para quê? Para se incomodar? Veja o meu caso: passo o dia nesse carro, levando gente de um lado para outro, no meio dessa confusão infernal. Se eu fosse um feto, minha mãe é que me transportaria. Ficou um instante em silêncio, e suspirou, saudoso: - Pobre mamãe. Cuidou de mim como pode. Queria que eu estudasse, que tivesse um diploma. Jamais poderia imaginar que seria esse o meu futuro... É o que eu digo a você: me dá inveja esse feto mumificado. Esse nunca chegou a se preocupar com nada, nunca sofreu. Viveu o que pôde, e viveu bem. Bem que eu queria estar no lugar dele. - Mesmo mumificado. Mesmo mumificado, uai. O que é que tem? Eles não mumificavam os faraós do Egito? Eu não sou muito culto, mas disso eu sei: faraó que se prezava tinha de ser mumificado. Os carros começaram a se movimentar, ele ligou a máquina e arrancou. Desci um pouco mais adiante. Antes de ir embora, olhei-o ainda uma vez: por alguma razão, ele tinha largado o volante, cruzara os braços e se encolhera. Como um feto, e dos grandes Mumificado ou não. Texto Anterior: Dengue já é epidêmica em Jaú e Bauru Próximo Texto: Prefeito, ano 2000 Índice |
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