São Paulo, sexta-feira, 12 de abril de 1996
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Uma coleção de encontros

VICTOR KNOLL

Embora a coleção de cartas que Rilke enviou à sua mulher, a pintora Clara Westhoff, receba o título de "Cartas sobre Cézanne", nela o poeta escreveu sobre Rodin, Van Gogh e os pintores venezianos. Entretanto, com a inauguração do "Salon D'Automne", em 1907, o poeta sofre o impacto da pintura de Cézanne e passa a frequentá-la assiduamente. Com dados biográficos, que ganham para Rilke um sentido esclarecedor das obras expostas, e graças à descrição do uso da cor, o poeta aponta para a novidade do trabalho pictórico de Cézanne.
Nesta coleção de cartas, sem dúvida, Cézanne é a referência forte; mas as cartas são de Rilke: revelam suas experiências nesse primeiro momento decisivo da confecção de sua obra. É o momento no qual está trabalhando os "Novos Poemas" e os "Cadernos de Malte Laurids Brigge". O segundo momento, como sabemos, foi a explosão das "Elegias de Duíno" e dos "Sonetos a Orfeu".
Estas cartas, escritas durante aquele breve período de 1907 -notadamente outubro-, representam uma coleção de encontros, entre os quais, por seu impacto, destaca-se Cézanne. Mas lá estão também Manet, os venezianos, a viva presença de Van Gogh, o peso da obra de Rodin (já uma lição definitiva para o poeta) e mais uma vez Paris. Como se sabe, a cidade exerceu sobre o poeta um papel preponderante, constituindo-se como o cenário de seu amadurecimento. Ali está Malte Laurids Brigge e seus "Cadernos".
Aliás, de certo modo, o autor destas cartas é o próprio Brigge, pelas mãos de Rilke, já metabolizando suas experiências: uma maneira peculiar de ver. Estamos diante de uma poderosa intuição, no calor da hora, acerca do valor da obra de Cézanne. Em uma de suas cartas, diz: "Noto cada vez mais a importância do que acontece aqui". Entretanto, não espere o leitor um estudo sobre a obra de Cézanne. Como bem observa Pedro Süssekind em seu prefácio, "talvez suas análises não tenham um caráter sistemático e suas considerações careçam de rigor e método, se comparadas com as argumentações de críticos e historiadores. ... Ele descreve a pintura de Cézanne como esta se mostra diante de seus olhos atentos de aprendiz, consciente de um momento oportuno, de uma identificação, a partir da qual os quadros passam a fazer sentido" (pág. 15).
O trabalho
Dotado de extraordinária força sensitiva Rilke vê a importância histórica e o valor estético da obra de Cézanne. Além disso, firma-se em seu espírito, após a educação artística que sofrera com Rodin, a necessidade imperiosa do trabalho. Trabalhar dia e noite. Viver para o trabalho. Que as coisas da arte derivam da paciência, do amadurecimento e do trabalho. Tal foi o impacto do exemplo de Cézanne sobre Rilke.
Em suas cartas, reitera para Clara o elogio do trabalho e o exemplo de Cézanne, os quais já encontrara em Rodin, reconhecera em Van Gogh e Manet. Agora -outubro de 1907- tem no pintor francês o exemplo ao qual se propõe: trabalhar.
Um encontro
Na ordem das experiências que vive naquele momento, é de se notar que toma contato com a exposição de Cézanne alguns dias depois de ter tido em mãos uma pasta com reproduções de Van Gogh, que sua amiga, a pintora alemã Mathilde Vollmoeller, que vivia em Paris, acabara de trazer de Amsterdã. O encontro com essa coleção de obras de Van Gogh abriu as portas de sua sensibilidade para o encontro com as pinturas de Cézanne, dois dias depois, no "Salon".
Ao longo das cartas podemos reter três temas centrais: logo após o impacto da primeira visita que faz ao "Salon", Rilke esboça uma biografia de Cézanne e vê em sua vida o empenho quotidiano; a reiterada afirmação da "descoberta" de sua obra e de seu valor estético; a descrição de três quadros pela via da cor.
Em continuidade a este painel que nos dá uma visão de Cézanne, temos duas observações propriamente estéticas: é a cor que faz a pintura e a transformação do tema do quadro em coisa. Algo que adquire vida própria. Rilke sugere que se dá uma ultrapassagem da representação.
Os objetos pintados ganham a dimensão de coisa; as frutas pintadas não são a representação de objetos comestíveis, mas são coisas: algo que vale por sua corporeidade ou plasticidade. A linha, o volume, a sombra, o claro-escuro são atributos secundários da pintura que encontram na cor o seu fundamento. Isso pode ser visto nos venezianos. Já Hegel obsevara que, ao lado dos holandeses, os venezianos foram virtuoses da cor. Tintoretto é um bom exemplo.
Um passo adiante foi dado por Manet, que introduziu o preto como cor. O veio que acentua a cor pode ser remontado às pinturas murais de Pompéia, passando pelo azul de La Tour no século 18. Para Rilke, Cézanne é o herdeiro dessa tradição. É pela cor que o descobre; por sua vez, é descoberto para o mundo justamente nessa exposição do "Salon D'Automne" de 1907. É nesse momento que nasce o mito Cézanne.
O marco
Por fim, pode-se dizer, à luz da biografia do poeta no que importa à confecção de sua obra, o encontro com Cézanne durante o"Salon" de 1907 foi o terceiro marco na sua maturação artística ao lado do período em que viveu em Worpswede, pequena cidade que na primeira década do século 20 acolheu um comunidade de artistas plásticos, e da convivência com Rodin.
A experiência Cézanne está presente nos "Cadernos de Malte Laurids Brigge" e nos "Novos Poemas". Basta reconhecer a força que o lado visual detém nessas obras: ver e expressar de "forma objetiva" como uma pintura de Cézanne.
As cartas mostram o poeta em um momento agudo -um momento de descobertas que as telas de Cézanne fazem aflorar em seu espírito; firma-se um encontro.
Para terminar, lembremos a frase de Matisse, que tem o sabor de um dístico: "Cézanne é o pai de todos nós".

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