São Paulo, sexta-feira, 12 de abril de 1996
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Espertalhão ou simplório?

JORGE COLI

Não sei se os computadores tomarão o lugar de todos os livros, como anunciam alguns profetas afoitos. É muito provável que não. Mas, instrumentos de uma espantosa eficácia e de uma enorme abundância nas informações, certos CD-roms substituem com muitas vantagens enciclopédias, dicionários e catálogos -isto é, as obras que dependem de uma organização classificatória. A quantidade de informações neles contida pode ser imensa, incorporando imagens e som, permitindo consultas vertiginosamente rápidas, por meio de entradas múltiplas.
Exemplos
Uma obra-prima do gênero é o "Cinemania", da Microsoft Corporation, que, via rede, atualiza constantemente seus dados! Uma enciclopédia que não envelhece, que, com a passagem do tempo, amplia o número de seus verbetes, que reúne quatro dos mais importantes dicionários de cinema, num processo de consulta imediato, permitindo saltar de uma referência a outra, é, em suma, o sonho de qualquer pesquisador.
Existem alguns exemplos muito estimulantes também no domínio das artes. Assim, o catálogo da National Gallery de Londres, produzido pela mesma Microsoft, apresenta mais de 2.000 obras cujo acesso se faz por caminhos os mais diversos: autor, título, época, país, iconografia -ou por qualquer palavra contida nas fichas referentes ao quadro; com qualidade igual, a coleção do Dr. Barnes, CD-rom realizado por Corbis Publishing, nos mostra as obras de arte tais como são exibidas naquela galeria tão particular: isto é, podemos visualizar, se quisermos, a disposição física dos objetos, dando um giro de 360º em cada sala, além de termos acesso aos quadros nos seus detalhes.
Infelizmente, cabe-me falar aqui de um outro tipo de CD-rom. Um tipo que eu chamaria de espertalhão, não fosse ele tão simplório. Um tipo que acredita no fascínio suficiente do mundo maravilhoso dos computadores a ponto de dispensar qualquer empenho científico, rigoroso, ou didático próprio ao projeto propriamente cultural. A marca E.M.M.E. Interactive parece ter se especializado nesse gênero. Já havia editado um CD-rom sobre o festival de Cannes, muito laborioso na consulta e reles de informação. Entre outros, havia também um paupérrimo Michelangelo, com um acompanhamento musical insuportavelmente kitsch, publicado em colaboração com os museus do Vaticano. Além de um inenarrável "The Renaissance in Florence".
Uma hipótese
Imaginemos um manual com este título que consagre duas fotos a obras de Paolo Uccello e três às de Piero della Francesca, que não mencione nem Fra Angelico, nem Verrocchio, nem della Quercia, um manual afirmando que Florença morreu com a morte de Lourenço o Magnífico, ignorando todo o século 16, isto é, Cellini, Pontormo, Bronzino, Giambologna... Se um manual como este existisse, não teria muitas chances dentro do mercado de livros.
É exatamente isto que este CD-rom faz. Adeus àquela quantidade formidável de imagens que é possível incorporar num tal suporte e que tínhamos o direito de esperar com um tal tema. Em tudo e por tudo, o catálogo de pinturas de "The Renaissance of Florence" apresenta não mais do que 31 obras de oito autores, e os de escultura e arquitetura são mesmo inferiores. Os temas "históricos" ou "reflexivos", organizados em alguns poucos percursos -os Papas, os Médicis, as Mulheres ("political correction oblige")- surgem ao modo dos velhos audiovisuais dos anos 60, com diapositivos que se sucedem ao som de comentários soporíferos.
Ilustrações
Nestes casos, as imagens são concebidas como "ilustrações" no pior sentido do termo. Servem para "animar" o discurso sem o cuidado do rigor. Vemos, diante da inscrição "Florence 1350", aparecerem as torres de San Gimignano. Podemos imaginar que Florença daquela época se assemelhasse um pouco a San Gimignano, mas, como nada nos informa do que se trata exatamente, uma pessoa inadvertida tomará necessariamente aquilo que tem diante dos olhos pela imagem efetiva da cidade de Florença.
Anacronismo
Ou ainda, o blábláblá sobre a escultura se inicia por: "It was an old dream: rediscover and continue the great tradition of Classical Art", modo pomposo de dizer uma banalidade, mas que, em si próprio, não é falso. Porém a frase é enunciada diante de uma imagem mostrando uma obra da Antiguidade que, devemos supor, serviu para inspirar os homens do Renascimento: a obra escolhida é o frontão de Égina, da gliptoteca de Munique, descoberto em 1811 e que, portanto, esses mesmos homens do Renascimento não podiam conhecer. O anacronismo se torna mais absurdo ainda na medida que o frontão de Égina não é clássico coisa alguma, mas, ao contrário, um dos mais célebres exemplares da arte arcaica!!!
Cultura?
É inútil multiplicar os exemplos. A fotografia final, trazendo a silhueta da montagem feita no século 19 no Piazzale Michelangelo, com o Davi e as esculturas da capela Medicea em bronze, esse "fake" absoluto de uma certa cultura brega, apresentado diante de um pôr-do-sol lilás, diz muita coisa por si só. Por que alguém edita um CD-rom tão ruim como este? Economia de conhecimento sério, crença no fascínio do novo suporte, presunção de que o público ao qual ele se destina seja apenas feito por debilóides atarraxados diante de seus computadores, levando-nos a concluir que os autores não acreditam verdadeiramente no cruzamento entre a cultura humanística e a informática. Porque, evidentemente, não possuem a menor idéia do que seja essa cultura, e usam o tema, por si só fascinante e fundamental, como o chamariz para um engodo.
Ao debate que às vezes se levanta: se os CD-roms são bons ou ruins, a resposta é simples. Como os livros, podem ser bons ou ruins. "The Renaissance of Florence" é péssimo.

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