São Paulo, sexta-feira, 12 de abril de 1996
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Naquele tempo era a voz

LUIS S. KRAUSZ

O hábito da leitura silenciosa é relativamente recente na história da cultura ocidental. Mais recente, sem dúvida, do que toda a literatura clássica, em grego e latim, e do que os livros da Bíblia. Jorge Luis Borges, em "Del Culto de los Libros" (1), cita uma passagem famosa das "Confissões" de Santo Agostinho, descrevendo um hábito surpreendente de Santo Ambrósio, bispo de Milão até o ano 384: "Quando Ambrósio lia, passava a vista sobre as páginas, mergulhando sua alma no sentido, sem proferir uma palavra nem mover a língua. Muitas vezes (...) o vimos ler calado, e nunca de outro modo...".
Borges aponta para o espanto dos eruditos de outrora diante de um costume hoje corriqueiro, lembrando-nos que, em sua origem, toda a literatura antiga destinava-se à audição, não à absorção silenciosa, através da visão.
"Cultura Escrita e Oralidade" é um livro crucial para todos os que se interessam pelo legado textual de culturas antigas, quando a voz era o veículo de comunicação tradicional. Surpreendentemente, o tema apenas começou a receber a atenção dos teóricos a partir de 1920, quando Milman Parry estudou o caráter oral dos epítetos homéricos.
Depois da Segunda Guerra, Parry e seu seguidor Albert Lord chegaram à conclusão, pela observação -e audição- de recitadores de canções de cunho épico, no território da antiga Iugoslávia, que os poemas homéricos foram criações orais improvisadas de aedos e rapsodos, e que só posteriormente foram anotados em manuscritos -provavelmente dois ou três séculos depois de seu surgimento.
Essa tese, divulgada em revistas especializadas, provocou reações furiosas no establishment acadêmico. Mas só em 1960 transformou-se em livro -antológico "The Singer of Tales" ("O Cantador de Histórias"), desencadeando uma série de estudos acerca da oralidade na história da literatura e da cultura.
Dentre os helenistas, o nome de maior destaque, a seguir esta linha de pesquisa, foi Eric Havelock, professor em Harvard e Yale, falecido em 1988. Havelock analisou a invenção do alfabeto pelos gregos e suas consequências culturais em "The Literate Revolution in Greece and its Cultural Consequences", hoje um clássico dos estudos clássicos.
Porém, representantes de outras áreas do conhecimento foram profundamente influenciados pelas pesquisas de Parry e Lord: os linguistas Walter Ong e Jeffrey Kittay, o medievalista Barry Sanders e o semiótico Marshall McLuhan, para citar só alguns.
Este volume, "Cultura Escrita e Oralidade", é o resultado de um colóquio internacional organizado em 1987 pelo programa McLuhan da Universidade de Toronto. Aliás, nada mais oportuno, para um livro que se propõe a estudar as relações entre oralidade e cultura escrita, do que seus capítulos serem transcrições de conferências proferidas.
Os ensaios-conferência giram em torno de três grandes temas. O primeiro é "Aspectos Orais e Escritos da Cultura e do Conhecimento", onde se destaca o texto de Havelock, que desenvolve o binômio oralidade-cultura escrita, em suas distintas formas epistemológicas. Escolaridade e alfabetização como instrumentos de opressão social são discutidos por Ivan Illich no segundo ensaio, "Um Apelo à Pesquisa em Cultura Escrita Leiga", que é assunto, também, do texto de D. P. Pattanayak. A existência de distintos gêneros de literatura oral é observada por Carol Feldman em "Metalinguagem Oral", enquanto que a origem do pensamento racional e suas relações com a escrita são discutidas por Peter Denny.
Na segunda parte do livro, intitulada "Formas Orais e Escritas do Discurso", os ensaios-conferência de Kittay, Olson e Barry Sanders abordam entre outros tópicos racionalidade, verdade, pensamento e escrita. A terceira e última parte, "Aspectos Orais e Escritos da Cognição", traz estudos em torno das idéias sobre o homem lançadas por McLuhan bem como discussões sobre oralidade e escrita a partir de uma perspectiva neurológica.
São pontos de vista distintos sobre uma mesma questão: o impacto da escrita sobre o desenvolvimento da humanidade e seu papel na transformação das formas de conhecimento, expressão e manipulação da realidade. Amostras de uma reflexão de ponta, que reúne especialistas em epistemologia, teoria literária, linguística e neurologia, os textos reunidos neste volume são capazes de despertar reflexões criativas em todos os que, de uma ou de outra forma, lidam com o tema.

NOTA:
1. Borges, J. L. "Del Culto de los Libros" in "Otras Inquisiciones", pág. 111, Alianza Editorial.

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