São Paulo, sexta-feira, 12 de abril de 1996
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A literatura como fingimento

MARIA BETÂNIA AMOROSO

Antonio Tabucchi passou a ser conhecido como escritor na década de 80, embora seu primeiro romance tenha sido publicado em 1975. É da mesma "geração literária" de Andrea de Carlo, Daniele Del Giudice, Tondelli, Aldo Busi, todos já traduzidos para o português. É um dos romancistas italianos contemporâneos mais conhecidos, numa lista encabeçada por Umberto Eco e seguida por Italo Calvino.
Há afinidades entre Tabucchi e o mundo de língua portuguesa: em 1971 organizou uma coletânea de poetas surrealistas portugueses -com o título "A Palavra Impedida"; traduziu poemas de Carlos Drummond de Andrade e foi tradutor e divulgador de Fernando Pessoa na Itália. Além disso, é professor de literatura portuguesa na Universidade de Pisa.
Comenta, em entrevistas, que sua paixão pelo mundo português nasceu com o poema "Tabacaria" de Pessoa, lido casualmente em Paris, nos anos 60, que o levou a aprender o português. Conrad, Kipling, Stevenson são regularmente apontados como influências ou identificações do autor; Fernando Pessoa, entretanto, mais do que isso, é uma obsessão.
Desde 1970 escreve sobre o poeta em revistas; publicou uma coletânea de ensaios com título português "Pessoana Mínima"; em 79 e 84 saem em volumes suas traduções dos poemas para o italiano; num conto publicado em 1981, intitulado "O Jogo do Reverso", duas personagens repetem itinerários que teriam sido percorridos por heterônimos do poeta português, em Lisboa.
Em 1988 é publicada uma peça teatral, passada em 1935, na qual Fernando Pessoa é uma personagem que representa o papel de um palhaço para uma platéia de internos de uma clínica psiquiátrica em Cascais e que procura entrar em contato telefônico com o escritor italiano Luigi Pirandello; em 94 escreve "Os Três Últimos Dias de Fernando Pessoa - um Delírio": em novembro de 1935, Pessoa está no leito de morte, no Hospital São dos Franceses em Lisboa. Nos seus três últimos dias de agonia é visitado por seus heterônimos: Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Bernardo Soares e Antonio Mora.
Neste mesmo ano, 1994, foi também publicado seu último livro "Afirma Pereira", agora traduzido no Brasil. É ainda o mundo português o inspirador desse romance. Durante o salazarismo -o ano é 1938-, Pereira, um velho jornalista, gordo, com problemas cardíacos, solitário, católico é o responsável pela página cultural de um cotidiano lisboense, tão censurado quanto toda a imprensa da época. Entre seus poucos amigos, o garçom do Café que frequenta quase diariamente -um lugar onde intelectuais e poetas se encontravam-; o confessor e um velho amigo, o Silva, professor na Universidade de Coimbra.
Quebra seu cotidiano, feito de limonadas e omeletes, de manias de velho e de questionamentos sobre a morte e a ressurreição da carne, a entrada tempestuosa na sua monótona vida de Monteiro Rossi, jovem ativista de uma organização de resistência ao regime e da namorada Marta. Aquele homem medroso e assustado vai aos poucos vendo sua vida mudar até que a coragem que não suspeitava possuir leva-o ao ato político radical. O título "Afirma Pereira" é uma fórmula repetida por Tabucchi após cada nova afirmação, isto é, a história foi contada ao narrador que a estaria registrando enquanto escreve.
Muitos dos aficionados de Tabucchi devem ter se surpreendido. Comparado ao "Anjo Negro" -um livro de contos- ou "Noturno Indiano" -mais conhecido na versão cinematográfica-, "Afirma Pereira" parece pouco tabucchiano. Não há traços de pirandellismo, de personagens em busca de autores, de crise de identidade, de grandes roteiros de viagens, tudo o que acabou por criar, mundo afora, uma marca Tabucchi de exotismo e sofisticação: conta-se uma história e uma história de empenho político. Se não existe um narrador onisciente, pois quem relata é o Pereira, não há também, por outro lado, os pontos de vista múltiplos: é a verdade do Pereira. Trata-se de uma narrativa "tradicional", sem grandes invenções ou artifícios, bem construída, embora extremamente simples. O que teria acontecido ao escritor italiano?
Sondando Tabucchi em sua própria obra, surgem algumas respostas. Tanto seu primeiro romance "Piazza d'Italia" como o seguinte -"Il Piccolo Naviglio"- são já reflexões sobre o escrever, sobre o escrever sobre assuntos italianos e sobre ser um escritor italiano. No primeiro, por exemplo, constrói uma fábula sobre a história da Itália, através de três gerações de homens comuns que recebem, entretanto, nomes como Garibaldi, Quarto, Volturno; a estrutura que dá à narrativa é, porém, extremamente complexa: capítulos curtos, vai e volta no tempo, antecipa fatos, faz com que outros se acavalem, varia os registros e inicia o romance pelo "epílogo".
O protagonista do segundo romance se chama Capitão Sexto, um Capitão no nome que nunca esteve num navio, que nunca navegou, mas lembrando muito as personagens de Conrad imobilizadas por seus destinos. Tabucchi inventa essa personagem conradiana para que ela fale da Itália do pós-guerra; mais uma vez a estrutura é circular e é também uma declaração de princípios poéticos, bem a gosto dos anos 70, isto é, a história é construção, o romance é o seu fazer-se.
Nos romances e contos seguintes apega-se cada vez mais à definição da "literatura como mentira" (citando outro escritor italiano, Giorgio Manganelli) como a do século 20 e situando-se dentro da poética da "esquizofrenia" (1), a que aproxima autores como Conrad, Kafka, Svevo e, novamente, Pessoa. Até este último romance publicado no Brasil -que já se tornou filme com Marcello Mastroiani no papel de Pereira-, uma narrativa linear.
Para Tabucchi, Fernando Pessoa encarna como ninguém seu ideal de literatura e de poética: o poeta é fingidor e é vários. Se em outros escritores a admiração é pelo efeito técnico, pelo resultado final alcançado nas obras, quanto ao poeta português o fascínio está justamente em não poder afirmar que o uso dos heterônimos seja um recurso literário. É mais. Aqui se introduz uma dimensão de mistério que interessa -e muito- a Tabucchi.
Entre os heterônimos, aquele com o qual mais se identifica, porém, é Álvaro de Campos, o mais moderno de todos, o "engenheiro metafísico". Ao escrever sobre Campos, destaca sua condição de diverso na heteronomia: "é uma criatura projetada na história". Vê aí Pessoa que se distancia de si mesmo e reflete sobre si próprio, sobre ser um artista de vanguarda; o distanciar "pressupõe afastamento e o afastamento postula a ironia" (2). A admiração por Álvaro de Campos e a eleição de Pessoa como o maior poeta moderno são, antes de mais nada, os caminhos preferenciais da reflexão de Tabucchi sobre a gênese literária e sobre seu estar no mundo enquanto escritor. O fato de escrever artigos e ficção que giram ao redor do poeta português, contudo, não lhe garante nenhum pessoanismo, ou melhor, não é por onde se revela seu talento.
Tabucchi oscila constantemente entre, por um lado, os textos onde se dispõe a discutir seu conceito de literatura ou então a inserir o mistério -seja ele o da identidade perdida, da comunicação impossível ou da "palavra impedida", apostando numa suspensão infinita do sentido; por outro, a narrativa das lembranças. Daí os retratos de mortos presentes em mais de um livro, o recurso das frases que se repetem, sublinhando que se trata de relatos, de reconstrução mental ou a insistência com que situa temporalmente suas narrativas entre 1936 e 1938, numa Europa repleta de histórias. Neste segundo caso está "Afirma Pereira".
Em alguns momentos de seus livros esses movimentos se tornam óbvios demais. No "Anjo Negro", por exemplo, num dos contos, intitulado "Boi, Boi, Boi, Boi da Cara Preta", fala-se de literatura como jogo e mentira. Uma garota se dedica, com todo amor, a pesquisas sobre o barroco e sobre brincadeiras, que farão parte do livro que seu namorado está escrevendo. Terminado o livro ela se vê, subitamente, sem função e resolve fazer uma brincadeira "de verdade", e rouba o livro que será publicado como de sua autoria. O conto continua numa série infindável de pretensiosas insinuações sobre a falsidade da literatura que soam mal -em falsete.
No conto seguinte, "O Bater das Asas de uma Borboleta em Nova York Pode Provocar um Tufão em Pequim?", duas personagens sem nomes -uma delas é identificada pela cor de seu terno, sempre pela mesma frase- estão frente à frente, num interrogatório. Mas o interrogador, para ajudar na confissão que espera obter, sugere que o acusado imagine uma história até chegar a uma versão satisfatória do seu envolvimento com a subversão política. Embora a idéia seja boa, o conto é infeliz: no final, o interrogador se nomeia como Doutor Consciência e usa a teoria dos fractais para explicar a pomposa frase que é o título do conto.
A primeira frase de "Ano Novo" é já de tirar o fôlego. Um garoto imagina estar viajando por águas profundas junto ao Capitão Nemo, personagem das "Vinte Mil Léguas Submarinas" de Júlio Verne. As lembranças da infância vivida junto ao seu herói se misturam ao horror do presente, numa atmosfera crescente de ódio e rancor. De longe, é o melhor conto do livro. É a esta mesma linhagem que pertence "Afirma Pereira".
O que há de comum quando Tabucchi acerta? Num primeiro olhar, a memória nas mãos de um grande fabulador. Não é fácil encontrar, nos seus livros, algo da ordem da experiência direta. Não se trata também daquela "metafísica do real visível" apontada pelo escritor como a marca da modernidade pessoniana. Os melhores textos de Tabucchi são lembranças de uma infância, lembranças de um momento trágico na história da Europa, lembranças da vida social italiana. Os fractais, as teorizações -explícitas ou não- sobre literatura e poética acabam sempre por diminuir a força da narrativa. Nestes falta sempre alguma coisa, embora sobrem elegância e complacência.

NOTAS
1. Tabucchi, Antonio. "Entrevista a Andrea Zanzotto", in "Pessoana Mínima", Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1984, pág. 99.
2. Idem, ibidem, pág. 49.

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