São Paulo, sexta-feira, 12 de abril de 1996
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A imagem de um pioneiro

CÁSSIO LEITE VIEIRA

O físico alemão Max Born disse certa vez de seu colega Albert Einstein que este poderia nunca ter escrito uma só linha sobre relatividade e mesmo assim seria um dos maiores físicos deste século. O livro de Patrice Debré suscita analogia semelhante: mesmo sem a descoberta da vacina contra a raiva em seu currículo, Louis Pasteur (1822-1895) continuaria a ser o mais obstinado e, talvez, o mais perspicaz cientista experimental do século passado. Também seria difícil encontrar na história da ciência outro pesquisador com igual capacidade de perceber as aplicações de suas descobertas.
Profícua, sua atividade científica justifica a comparação: Pasteur é tido como o fundador da estereoquímica, da microbiologia, da imunologia, da imunoterapia e da guerra bacteriológica contra pragas. Só um desses itens já lhe garantiria destaque no cenário científico. Mas foi a vacina contra a raiva que lhe rendeu fama mundial. William Bynum, do Instituto Wellcome para a História da Medicina (Universidade de Londres), cita uma enquete peculiar: no início da década de 1950, perguntou-se a crianças francesas qual a personalidade que mais tinha feito por seu país. Pasteur ficou em primeiro, com 48% dos votos; Napoleão, com 12%, em terceiro. Nenhum outro país tem um cientista em tal posição, assinalou Bynum (1).
Sem assumir teses surpreendentes no campo da história e da sociologia da ciência, o livro de Debré tem o mérito de ser escrito com base em uma pesquisa historiográfica ampla e rigorosa. O autor esmiuçou biografias clássicas, leu correspondências, visitou lugares em que Pasteur viveu e trabalhou e, mais importante, debruçou-se sobre os polêmicos 102 cadernos de laboratório, depositados na década de 1970, na Biblioteca Nacional da França, pelo neto do cientista francês. "Mantenha-os afastados de qualquer pessoa", recomendou Pasteur próximo à morte.
Outro aspecto relevante do livro de Debré é a contextualização, num quadro político e social mais amplo, da vida e obra de seu protagonista. Nos 17 capítulos, o autor recompõe o cenário no qual viveram Pasteur e cientistas como, por exemplo, o químico orgânico Jean Baptiste Dumas (1800-1884) e o físico Jean Baptiste Blot (1774-1862).
Debré opta por desenvolver seu texto em sequência cronológica rígida, descrevendo a infância de Pasteur, seus trabalhos sobre a estereoquímica, a fermentação, a geração espontânea, a doença do bicho-da-seda, o vinho e a cerveja, o cólera galináceo, o carbúnculo, até chegar à vacina contra a raiva e à construção do Instituto Pasteur. "O primeiro cientista a se tornar uma empresa", nota Debré.
Foram a existência do microscópio -equipamento que Pasteur trouxe pioneira e definitivamente para a química- e a hipótese de que os germes causam doenças que possibilitaram toda a aventura científica de Pasteur após o estudo das fermentações. Essa é mais ou menos a linha que norteia Debré. Um dos méritos do químico francês foi perceber, em seus primeiros trabalhos, que o inanimado escondia a vida e que essa vida poderia ser responsável pelas doenças. Ainda que não lhe fosse possível ver em um microscópio rudimentar o vírus da raiva, Pasteur acreditou até o fim em sua hipótese inicial. "Mesmo diante das exceções que pareciam invalidar seus dados, Pasteur manteve suas convicções", escreve Debré. A história precisou esperar pela idealização do microscópio eletrônico, no início da década de 1960, para chegar à visão da estrutura desse vírus.
Em algumas passagens, a "exatidão" com que Debré descreve certas cenas dá a impressão de que ele as teria presenciado. Em outras, esquece-se de que se está diante de uma reconstituição histórica respeitável, para se ter novamente a impressão de que o autor optou por um tipo de "romance" sobre a vida de Pasteur -o que não é de todo mau, principalmente se o leitor não está buscando teses inovadoras sobre revoluções científicas.
Uma figura tão importante na história da ciência como Pasteur suscita milhares de páginas de pesquisa histórica, sociológica e epistemológica. Afinal, ele, Galileu ou Darwin, por exemplo, em suas respectivas áreas, representam um ponto de virada, uma revolução, que merece atenção especial de quem se interessa por questões ligadas ao desenvolvimento de um método científico.
Recentemente, Pasteur foi alvo de estudos que arranharam sua imagem de pesquisador rigoroso e provocaram a reação daqueles que viam nos achados históricos uma desonra para o herói francês. O objetivo de "The Private Science of Louis Pasteur", de Gerald Geison, da Universidade de Princeton, publicado no ano passado, é mostrar que a atividade científica não é tão honesta, escrupulosa e objetiva quanto ensinam os manuais escolares (a editora carioca Contraponto promete para breve a tradução desse livro) (2).
Com base nos cadernos de laboratório de Pasteur, Geison acusa-o, entre outras coisas, de não dar o devido crédito a colegas, de diminuir a contribuição de colaboradores, de esconder dados experimentais importantes sobre a vacina contra o carbúnculo e a raiva. Chega a dizer que Pasteur teria se aproveitado de uma descoberta de Émile Roux para desenvolver esta última vacina, sem nunca ter dado satisfação a seu discípulo.
Debré relata não só esse caso (o de um tipo especial de frasco de laboratório), mas outros "desvios" de Pasteur, sempre justificando-os, sem imputar-lhes essas acusações. As discrepâncias entre o público e o privado vão além: segundo Geison, Pasteur teria usado de seu prestígio para monopolizar a fabricação de vacinas, massacrar adversários, ganhar confiança pública e angariar verbas privadas.
O biólogo molecular e prêmio Nobel de 1962, Max Perutz, aos noventa e poucos anos, responde indignado às acusações (3). Chega a desafiar Geison a repetir experiências de Pasteur sobre o desvio da luz pelos sais do ácido tartárico. Diz que as acusações de fraude intencional são ridículas e que Geison não apresenta evidências claras em muitas delas.
Geison afirma que nenhuma outra forma de cultura depende tanto da retórica como a ciência. Perutz retruca: diz conhecer cientistas com grande habilidade retórica, mas que não conseguem ocultar de seus pares a superficialidade de suas pesquisas. Por outro lado, "as palestras de Alexander Fleming faziam a platéia dormir, mas sua descoberta da penicilina fez dele um dos cientistas mais famosos deste século. Uma boa pesquisa não precisa de retórica e sim de clareza", argumenta o descobridor da estrutura da hemoglobina. Para Perutz, derrubar grandes homens de seus pedestais tornou-se uma indústria em moda e lucrativa.
Trabalhos como o de Geison ou Perutz -bem como as incursões de Bruno Latour na biografia de Pasteur- visam ao público acadêmico e têm objetivo específico: desfazer mitologias que se formam em torno da atividade científica e, ao mesmo tempo e com essa mesma ação, aclará-la. O livro de Debré tem outras pretensões: levantar fatos, fazer uma primeira aproximação ao autor, deixando as regiões cinzentas da polêmica para outro momento. Assim, historiadores e sociólogos, eventualmente interessados em Pasteur ou na ciência do século passado, terão em "Pasteur" uma fonte confiável na busca de dados fatuais.
Para o público não acadêmico, o livro é um excelente começo, já que o vocabulário científico não compromete a compreensão do texto. Para a segunda edição, valeriam notas de rodapé, situando personagens da história e da literatura francesas, além de traduções de títulos de trabalhos científicos -já que o francês, há muito, deixou de ser uma língua internacional.
NOTAS:
1. Bynum, W. F., "The Scientist as Anti-Hero", Nature, vol. 375, 4/5/95, págs. 25-26.
2. Geison, G., "The Private Science of Louis Pasteur", Princeton University Press.
3. Perutz, M. F.,"The Pioneer Defended", The New York Review, 21/12/95, págs. 54-58.

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