São Paulo, sexta-feira, 12 de abril de 1996
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Como reafirmar o desenvolvimento

Duas análises do livro de Ciro Gomes e Mangabeira Unger

MARCO AURELIO GARCIA

Uma das surpreendentes consequências da eleição de Fernando Henrique Cardoso é a pobreza do debate de idéias que a ela se seguiu no país. Surpreendente (e paradoxal) porque se esperava que a chegada de um intelectual à presidência abrisse uma discussão em profundidade sobre os rumos do país, sobretudo quando se avolumam sinais de que vivemos o esgotamento do ciclo histórico iniciado, para nós, nos anos 30.
O desafio intelectual que esta nova situação criou é grande, sobretudo porque coincide e, em certa medida, é produto do colapso do comunismo, da crise da social-democracia e dos impasses do nacional-desenvolvimentismo.
Não obstante, o que está em jogo, boa parte dos intelectuais e políticos se encontram mergulhados em certa perplexidade.
O governo não foi capaz de propor mais do que suas receitas de combate à inflação, como se a formulação de um novo projeto nacional se resumisse a isto.
A oposição, confinada aos pequenos espaços institucionais que lhe sobraram e enfrentando dificuldades em organizar reações na sociedade, não tem sido capaz de ir muito mais além de uma estratégia defensiva.
O pensamento crítico -nas universidades ou na imprensa- está adormecido e as poucas exceções apenas confirmam a regra. Como se não bastasse isto, o presidente adotou o hábito de desqualificar toda a crítica (e os críticos) à sua política.
Só pelo fato de romper com esta modorra, o livro de Ciro Gomes e Mangabeira Unger deveria ser saudado como uma contribuição ao debate sobre os caminhos de nosso desenvolvimento, sufocado, como observam os autores, pela prioridade (ou exclusividade?) dada ao programa antiinflacionário.
Sem desconsiderar a importância da estabilidade monetária, eles se propõem enfrentar a discussão estrutural, a segunda etapa da luta contra a inflação, que consideram eminentemente política.
A tentação da polêmica fácil, poderia levar ao questionamento da idéia defendida no livro de que "a primeira etapa da luta contra a inflação foi técnica" (pág. 41), quando, em realidade, tratou-se de uma gigantesca operação política. Poder-se-ia ainda discutir o papel que Ciro Gomes teve na condução do Plano Real, sobretudo em temas como os da abertura comercial, política industrial e salarial, que ocupam lugar importante no livro.
O mais importante, no entanto, é discutir idéias e não desqualificar seus autores.
Eles retomam um tema que a oposição agitou no debate eleitoral de 1994: a necessidade de um consenso que permita resolver articuladamente a consolidação da estabilidade monetária, com a "moderação das desigualdades sociais" e a formulação de um projeto nacional.
Para romper com o dualismo que produz, ao mesmo tempo, riqueza e miséria, afirmam que o país necessita uma nova alternativa produtiva. Esta passa pela necessidade de discutir como refinanciar o desenvolvimento, o que exige criar novas condições para incrementar a poupança nacional.
Sem isto, o governo fica -como está ocorrendo agora- reduzido à aplicação de políticas sociais compensatórias. Estas são ineficientes diante da magnitude da dívida social. Mais, ainda, dizem os autores: a orientação macroeconômica do governo acaba por aprofundar a desigualdade que ele diz querer combater, tornando cínico o discurso do "tudo pelo social".
A saída é o fortalecimento do Estado, distinto das experiências autoritárias do passado, e a sua parceria com setores privados. Descentralização e experimentalismo produtivo são os caminhos propostos, mas a falta de menção ao papel dos trabalhadores neste processo, constitui-se em um "esquecimento" grave de Gomes/Mangabeira, pois a desprivatização do Estado que os autores pregam só poderá efetivamente ocorrer quando o controle social deste alcançar patamares bem distintos dos atuais. Para isto a presença dos trabalhadores é indispensável.
A recuperação da capacidade de investimento do Estado passa por um programa de privatizações "desideologizado", pois os autores pensam que outras estatais podem ser criadas, e por uma reforma tributária.
Neste último aspecto talvez resida o lado mais polêmico do livro.
Os autores propõem um sistema tributário fortemente centrado no imposto de consumo com uma alíquota de 30% de um IVA a ser criado. Rechaçam a tese de que esta tributação seria regressiva, pois os efeitos negativos sobre os mais pobres seriam compensados, segundo afirmam, pela enorme massa de recursos que o Estado teria em suas mãos, seja para impulsionar o experimentalismo produtivo, seja para realizar reformas sociais básicas como a educacional. Esta política seria complementada por uma forte tributação sobre o patrimônio, particularmente sobre as heranças.
Os autores investem contra várias teses que se transformaram em moeda-corrente no rarefeito debate nacional.
Defendem um aumento do salário mínimo, mostrando que a medida não é inflacionária e que hoje o percentual dos salários no valor agregado da indústria brasileira é ridículo, se comparado não só ao dos Estados Unidos e países europeus, mas, igualmente, se confrontado com os da América Latina e da própria África do Sul.
O livro, ao propor uma "abertura sem submissão", sugere uma nova política de comércio externo e de inserção internacional. Isto exige nova atitude frente às instituições surgidas a partir de Bretton Woods e a reconstrução de parcerias internacionais, especialmente com China, Índia e Rússia.
No conjunto de propostas não está ausente a reforma política, onde se destaca um novo presidencialismo, que dá prioridade às iniciativas programáticas no legislativo e pode recorrer a plebiscitos/referendos para dirimir impasses. Reforçar o sistema de partidos, reduzindo seu número e estabelecendo listas fechadas de candidatos, controlar o poder econômico nas eleições, profissionalizar a burocracia, democratizar os meios de comunicação e impulsar a conscientização e militância dos direitos, são pontos que completam a agenda política proposta.
Apesar do tom polêmico e, às vezes, repetitivo de muitos argumentos ou do tratamento superficial de certas questões, como a tributária, "O Próximo Passo" procura conduzir o debate político nacional a um nível mais elevado, pondo ênfase no enfrentamento dos grandes temas estruturais.
Em alguns momentos arromba portas anteriormente abertas pela oposição, esquecendo-se que a euforia do Plano Real abafou, há um ano e meio, muitas vozes que chamavam a atenção para a necessidade de um novo projeto nacional e expunham idéias nessa direção.
Em outras passagens, subestima -omitindo- o papel dos trabalhadores nas transformações propostas.
Finalmente, silencia totalmente sobre o tema da reforma agrária, obviamente uma prioridade nacional.
Mas, sem dúvida alguma, suscita uma pauta suficientemente rica para animar um debate, agregar, na diversidade de opiniões, corações e mentes empenhadas em pensar e construir um novo Brasil.

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