São Paulo, sexta-feira, 12 de abril de 1996
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Conselheiros em busca de um príncipe

BRASILIO SALLUM JR.

Uma das qualidades deste livro é discutir uma questão há muito marginalizada na cena política nacional, a da estratégia brasileira de desenvolvimento. O mais importante, porém, é que o faz num tom que foge ao que vem caracterizando a maioria das críticas de esquerda, impregnadas de saudosismo em relação ao tempo das grandes oportunidades perdidas e de ressentimento com o governo Fernando Henrique.
De fato, "O Próximo Passo" nos convida a explorar as possibilidades de construir um futuro melhor para o Brasil, tomando o Plano Real como seu alicerce necessário. E não se veja aí realismo cínico, que se conforma ao inevitável. Não, para os autores, o Plano Real deve ser comemorado tanto por superar um período de instabilidade econômica como por deixar para trás o padrão de desenvolvimento nacional-populista. Esta rejeição do passado não surpreende em Ciro Gomes, ex-governador do Ceará e filiado ao PSDB, onde este ponto de vista é usual. Mas representa novidade em Mangabeira Unger, professor titular de direito na Universidade de Harvard, que se notabilizou aqui como ideólogo do PDT, cujo líder, Leonel Brizola, tem fortes vinculações com o nacional-populismo varguista.
Mas não se imagine que a valorização do Plano Real resulte em tratamento ameno do governo Fernando Henrique. Bem ao contrário.
Para Gomes e Unger, o governo seria um dos sustentáculos do novo discurso político dominante, alvo principal de seus ataques. Para os autores, dominaria no Brasil o neoliberalismo, mas em versão "realista", acomodada aos interesses da nossa plutocracia. Tratar-se-ia de discurso marcado por um "adesismo desencantado" aos padrões políticos e econômicos do primeiro mundo "travestido de realismo maduro", por um "primeiro-mundismo imitativo" combinado ao "tudo pelo social" e também pela afirmação da "incapacidade do Estado para as atividades produtivas e estratégicas" associada à exigência de que atue eficazmente "contra os extremos de desigualdade no nosso país" (pág. 14).
Mesmo reconhecendo que o neoliberalismo não tem curso plenamente livre no governo FHC, os autores sugerem que por enquanto suas políticas não escaparam ao molde neoliberal, pelo menos em sua realidade prática. Registram que "em anos recentes na América Latina, o neoliberalismo reveste forma específica, (...) prima pela manutenção de taxas reduzidas de poupança interna (...), tipicamente abaixo de 20%, pela renúncia a uma estratégia própria de crescimento econômico (portanto, pela aceitação passiva das vantagens e desvantagens comparativas existentes na economia nacional dentro da economia mundial); e pelo recurso duradouro ao que seriam os expedientes temporários de juros altíssimos e câmbio sobrevalorizado para assegurar a estabilidade monetária" (pág. 77).
Quais as consequências de políticas desse tipo? Primeiro, elas não libertariam o país das engrenagens da economia mundial, que só permitem o progresso de uma vanguarda econômica e social, relativamente isolada, obrigando "o resto do país a aguardar sua vez, penando no purgatório do trabalho semiqualificado, mal equipado e mal pago".
Segundo, mantendo o país na esteira da economia mundial e preservando suas desigualdades, esse neoliberalismo prático criaria "as condições para um vaivém perene entre a ortodoxia econômica e o populismo econômico" (pág.79).
Qual, então, a alternativa?
Essencialmente os autores propõem a ampliação da autonomia econômica do país em relação à economia mundial como meio de superar o dualismo (Brasil organizado e afluente e Brasil desorganizado e marginalizado) e de consolidar "instituições que representem uma forma brasileira do experimentalismo democrático e nos permitam desenvolver no nosso país a nossa civilização"(pág. 29).
No fundo, o que pretendem é desenhar uma estratégia que permita ao país conservar e desenvolver, com o máximo possível de autonomia, a sua própria identidade em meio às tendências homogeneizadoras emergentes do processo de globalização. Esta autonomia não estaria, porém, ancorada como antes no fechamento autárquico em relação ao exterior, mas numa capacidade interna ampliada de poupança e investimento (que tornasse o país pouco dependente dos capitais estrangeiros) e numa política cambial e tarifária que estimulasse a ampliação da produção interna sem fechar as portas aos avanços tecnológicos provenientes do exterior.
O importante é que em "O Próximo Passo" o Estado não é tomado, como no neoliberalismo, apenas como agente de políticas sociais compensatórias em relação às desigualdades não superadas ou provocadas pelo mercado. Ao contrário, no livro vê-se o Estado como principal centro impulsionador do desenvolvimento. É para torná-lo agente central de investimento e articulação que insistem no seu fortalecimento tanto pela redução drástica da dívida interna com as privatizações como pelo aumento substancial da receita.
Vale ressaltar que Gomes e Unger procuram afastar a idéia que desejam apenas reconstituir o velho Estado desenvolvimentista centralizador e autoritário. Procuram enfatizar que, nas relações do Estado com as empresas privadas, evitar-se-ia o dirigismo autoritário do passado por meio da "criação de formas descentralizadas de parceria ou coordenação estratégicas entre agências públicas e produtores privados".
Os autores reconhecem que uma alternativa desenvolvimentista não conduz automaticamente à redução drástica das desigualdades. A história brasileira demonstra até que um certo desenvolvimentismo pode conviver com a exclusão social e até política da maioria da população. Mesmo com a adoção de suas propostas, calculam que a linha de menor resistência ainda estaria na utilização do Estado apenas para moderar as consequências da divisão do país entre o avanço e o atraso, entre ricos e pobres. Não é o que almejam, porém. Acham possível superar o dualismo com medidas de tipo redistributivo -com imposto progressivo sobre o consumo pessoal e sobre o patrimônio- e de tipo produtivo -com o Estado promovendo a sinergia entre os setores adiantado e atrasado da economia nacional.
Não cabe nessas poucas linhas discutir as políticas específicas sugeridas pelos autores. Elas cobrem várias questões e dizem respeito às várias fases de implantação da estratégia proposta. Creio, no entanto, que vale enfatizar uma ausência. É estranho que numa proposta centrada na redefinição das relações do Brasil com a economia mundial não haja qualquer comentário sobre a política externa atual do país, cujo eixo é reforçar nossa posição internacional pela construção do Mercosul.
Em lugar de discutir os problemas postos e os horizontes abertos por essa estratégia, os autores preferem reviver a esperança "terceiro-mundista" adaptada aos tempos, recomendando uma fantasiosa aliança do Brasil com os grandes países "marginalizados", Rússia, China e Índia.
No entanto, a questão mais importante que se coloca para o leitor desse livro é identificar o príncipe possível, o agente coletivo que poderá fazer dos conselhos aí contidos pauta para a ação política transformadora.
Os próprios autores não crêem que os partidos existentes possam servir de portadores de sua proposta. Sua esperança é que a conquista do poder central sirva como alavanca para construir uma base política suficiente para implementar o projeto. Os cuidados que tomam na qualificação do governo Fernando Henrique sugerem que, talvez, esperem que o presidente possa assumir o comando de um projeto do tipo proposto. Ou, mais provavelmente, que possa preparar o terreno para sua adoção pelo próximo presidente, quem sabe o próprio Ciro.
Isso, porém, não se resolve por meros atos de vontade. Mais importante é saber se o sistema de alianças que sustenta o governo FHC suportaria a guinada à esquerda que propõem. Ou, então, se as esquerdas conseguirão livrar-se do apego ao passado e do ressentimento para atuar de forma construtiva. Afinal, o sentido geral das propostas de Gomes e Unger não está muito distante do que vêm sugerindo documentos da esquerda do PMDB ou não é tão incompatível com a linha de atuação do PT gaúcho ou de certas tendências do PT nacional. Essas questões, porém, só poderão ser respondidas pela prática política. É dela agora o próximo passo.

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