São Paulo, sexta-feira, 12 de abril de 1996
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O círculo do saber filosófico

HENRIQUE C. DE LIMA VAZ

A "Fenomenologia do Espírito" (1807) é, reconhecidamente, a mais genial das obras de Hegel, assim como a grande "Ciência da Lógica" de 1812-1816 é, sem dúvida, a mais poderosamente inovadora. No entanto, o acesso ao sistema hegeliano na sua forma acabada só se dá com a "Enciclopédia das Ciências Filosóficas", na sua versão definitiva de 1830. Trata-se, pois, do texto fundamental e de referência obrigatória para o conhecimento da obra filosófica talvez a mais importante dos últimos dois séculos. Além desses três livros, Hegel publicou em vida apenas as "Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito", que é uma versão ampliada da "Filosofia do Espírito Objetivo", 2ª seção da 3ª parte da "Enciclopédia". Essas quatro obras constituem a base textual primeira e autêntica para o estudo do pensamento de Hegel.
O leitor brasileiro já dispõe de uma magistral tradução da "Fenomenologia do Espírito" (2 vols., Vozes, 1992), pelo mesmo exímio tradutor, o prof. Paulo Meneses, da Unicap (Recife), que agora nos oferece a tradução da 1ª e 3ª partes da "Enciclopédia". A tradução da "Filosofia do Direito" pelo eminente prof. Marcos Muller, da Unicamp, estará em breve, esperamos, à disposição do leitor. Já a tradução da 2ª parte da "Enciclopédia", que trata da filosofia da natureza e é a mais longa e tida como a mais difícil, está em fase de revisão pelo tradutor, José Nogueira Machado, professor emérito de física da Unicap e conhecedor profundo da língua de Hegel, e em breve estará nas livrarias. Desta sorte, fica apenas o desafio da tradução da imensa "Ciência da Lógica", de 1812-1816, para que o leitor brasileiro tenha diante de si, em traduções de alto padrão científico, o corpus fundamental da obra hegeliana.
Forma sistemática
É sabido que Hegel publicou em vida três edições da "Enciclopédia": em 1817, em Heidelberg, e em 1827 e 1830 em Berlim. A edição de Berlim contém cerca de 100 parágrafos a mais do que a "Enciclopédia" de Heidelberg e representa, indiscutivelmente, a expressão definitiva e final do pensamento de Hegel na sua forma sistemática. Foi justamente para ressaltar esse caráter sistemático que os discípulos, que prepararam a edição das "Obras Completas" de Hegel após a sua morte, intitularam a reedição da "Enciclopédia", em três volumes, de "Sistema da Filosofia".
A essa edição foram acrescentados a muitos parágrafos numerosos "adendos" explicativos, tirados de notas manuscritas de Hegel e de cadernos dos seus alunos. Sem fazer propriamente parte do texto hegeliano, esses "adendos", por vezes bem longos, constituem um instrumento precioso para a correta interpretação de um texto extremamente condensado e frequentemente obscuro. O tradutor brasileiro prestou um grande serviço ao leitor ao traduzi-los, o que não fazem em geral os tradutores em outras línguas, sendo exceção conhecida a magistral tradução francesa de Bernard Bourgeois. O texto seguido pelo nosso tradutor foi o da edição Suhrkamp que reproduz, com algumas correções, o texto da primeira edição (1831 e segs.) das "Obras Completas". Dessa edição foram traduzidos também os "adendos". O texto de Hegel, no entanto, foi permanentemente cotejado com a nova edição crítica e, provavelmente, definitiva, de W. Bonsiepen, H. C. Lucas e U. Rameil (Hamburgo, Meiner, 1992), vol. 20 da nova edição das "Obras Completas".
A tradução de Paulo Meneses, fruto de vários anos de trabalho, merece todos os elogios por sua escrupulosa fidelidade ao original, por seu bem-sucedido esforço em conservar as peculiaridades da língua hegeliana sem ofender as exigências gramaticais e estilísticas da língua portuguesa. O tradutor explica, em nota preliminar ao 1º volume, as razões de certas opções vocabulares que lhe pareceram necessárias para conservar a força do conceito que Hegel quis exprimir no texto original. Não resta senão dar-lhe razão.
Metáfora geométrica
O título "Enciclopédia" em Hegel não tem a significação usual desse vocábulo mas, como é explicado nos importantes "Prefácios" às três edições e nos parágrafos 15 e 16 da "Introdução", embora sendo um texto para uso dos alunos e para servir de roteiro ao professor, é usado numa acepção rigorosamente sistemática e dialética, tendo em vista exprimir o todo do saber filosófico na sua consistência e auto-suficiência, como um círculo que se fecha sobre si mesmo, conforme a metáfora geométrica preferida de Hegel. A construção do Sistema obedece a um ritmo dialético triádico, segundo as três grandes vertentes da realidade, o Lógico, a Natureza e o Espírito. O mesmo ritmo triádico se repete em cada uma das partes, de modo que o Sistema pode ser considerado um "círculo de círculos" (parágrafo 15). Paulo Meneses traduziu com admirável exatidão os quatro célebres parágrafos finais da "Enciclopédia" (574-577) que tratam da idéia da Filosofia e da sua estrutura e movimento dialético, num genial surto ao mesmo tempo de intuição e síntese. Aí o leitor se sentirá recompensado de toda a sua pena ao estudar essa obra difícil, vendo abrir-se diante de si um dos mais fascinantes horizontes intelectuais que a história da filosofia pôde oferecer.
Universo intelectual
No juízo de alguns críticos como Rudolf Haym, censor severo de Hegel, a "Enciclopédia" representa a mais grandiosa tentativa de sistematização que a história da filosofia conhece depois de Aristóteles. Abranger toda a ciência do seu tempo num prodigioso trabalho de informação e assimilação e ordenar especulativamente esse imenso universo intelectual, tal o alvo perseguido e alcançado por Hegel na "Enciclopédia das Ciências Filosóficas". O leitor brasileiro pode agora acompanhar essa extraordinária odisséia do pensamento na magistral tradução de Paulo Meneses.
O tradutor teve a feliz idéia de traduzir e publicar como "Apêndice" ao 1º volume a introdução do grande hegelianista francês contemporâneo Bernard Bourgeois à sua própria tradução da "Enciclopédia". É, sem dúvida, uma das melhores introduções conhecidas à obra de Hegel. Convém ainda observar que, por um acidente de impressão, o texto grego da "Metafísica 11" de Aristóteles, que Hegel cita ao final do livro, saiu gravemente desfigurado. A editora substituiu essa página (365) nos exemplares ainda não distribuídos e ela está na mesma editora, à disposição dos leitores que adquiriram os primeiros exemplares. Uma palavra final de elogio à Loyola que nos ofereceu um texto magnificamente editado, com sólida encadernação, diagramação perfeita, excelente papel, formato ideal para obras dessa natureza. A "Enciclopédia" hegeliana inaugura uma nova coleção com o título "Pensamento ocidental".

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