São Paulo, sexta-feira, 12 de abril de 1996
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Em torno das idéias de Platão

RACHEL G. DE ANDRADE

É um feliz encontro o da Editora Moderna e sua coleção "Logos" com os estudiosos de filosofia, e é incompreensível o pouco interesse dos editores em tornar a coleção conhecida do público. Descartes, Espinosa, Maquiavel, Voltaire e outros pensadores têm recebido tratamento cuidadoso por parte de especialistas e muitos outros escritos estão no prelo. Por isso, ela surge em nosso pobre mercado editorial filosófico como excelente instrumento para o ensino da filosofia e, tendo sido elaborada para servir às necessidades do segundo grau, acaba até servindo mais aos universitários.
Infeliz, entretanto, a tarefa de escrever resumida e didaticamente sobre as teorias complexas e abrangentes dos grandes pensadores. No caso do volume sobre Platão, é com bons augúrios que os estudiosos da Grécia antiga o recebem. Há pensamentos sobre os quais não se esgotam os estudos, e os filósofos gregos são um exemplo disso, Platão em particular. Neste fim de século, reaviva-se em todos os grandes centros de pesquisa o interesse pelos clássicos, e a oportunidade desse lançamento é indiscutível.
Trilha dualista-cristã
No entanto, foi com certo receio que abri esse livro, pois pensei como seria difícil resumir uma teoria do porte da platônica. Achei dois grandes méritos nesse trabalho: a clareza de exposição e a tentativa de abordar o pensamento de Platão fora da trilha dualista-cristã. Já não era sem tempo! E diria mais ainda: esse filósofo merece um reestudo que desmanche a fixidez da imagem "geográfica" imposta ao cerne de sua filosofia, à denominada "Teoria das Idéias". Ele merece que se retire a fácil e quase mecânica compreensão que faz do sensível -desvalorizado em todos os níveis- mera aparência na qual vivemos e, do inteligível, algo deslocado para alturas inacessíveis a nós, simples humanos. Ler Platão com esse ingênuo instrumento é assentá-lo num relevo de planície, sem levar em conta seu pensamento astucioso, escorregadio e... difícil.
Grécia espantosa
O resgate de algumas palavras gregas e o cuidado que Lygia Watanabe tem para bem traduzi-las e abrir um novo campo interpretativo para alguns aspectos da cultura grega bastam para que o leitor seja levado para caminhos não trilhados. Parece clara a afinidade da pesquisadora com a riquíssima escola de Louis Gernet, Jean-Pierre Vernant e outros estudiosos, que têm trazido para nós, nas últimas décadas, uma Grécia espantosamente inédita. É preciso, sim, que desconfiemos das traduções excessivamente interpretativas, criadoras de uma Grécia (e, no caso, de um Platão) já velha conhecida. Essa tônica presente no livro convida o leitor a uma postura aberta diante dos textos clássicos.
Graus de imitação
"Platão, por Mitos e Hipóteses" procura o "em torno" de Platão, sua época, sua vida, suas influências (Pitágoras, Heráclito, Parmênides, Demócrito e outros). Para tanto, a autora se vê obrigada a tratar, rapidamente, das teses desses filósofos e, é claro, tem que passar por eles com suavidade, criando, muitas vezes, situações interpretativas difíceis, pois não há o amparo do texto platônico para certas conclusões. É o caso da "positividade do ser" em Parmênides (págs. 68 e seguintes) que, segundo a autora, influencia Platão quanto às relações modelo-cópia, pressuposta aí a noção de imitação.
Os graus de imitação possíveis, expostos em parte na "República", são anunciados sem referências e quase quantitativamente, como todas as outras interpretações relativas a assuntos teoricamente delicados da obra platônica. Paradoxalmente, se de um lado Lygia Watanabe propicia ao leitor uma postura não-viciada, de outro, dogmatiza a interpretação pela falta de amparo nos textos. Será que os iniciantes de filosofia não poderiam acompanhar um aprofundamento maior? Creio que sim, e a antologia de textos posta ao final do livro não preenche esse papel.
Pitagorismo
Há uma clara preferência que norteia o trabalho da autora: a influência de Pitágoras no pensamento platônico e, por causa disso, acaba por nos ensinar mais sobre o pitagorismo do que sobre Platão. É bastante interessante essa abordagem "periférica" de algumas afirmações "cósmico-matemáticas" do pitagorismo, bem dispostas na linguagem da autora, e para o leitor iniciante é um incentivo a novas leituras.
Se há alguma limitação nesse estudo, é a de não ter "avisado" o leitor de que a exposição visava buscar antes uma compreensão do filósofo a partir de seu "em torno" e nem tanto a partir dele mesmo. Talvez a autora tenha preferido supor, pelo título que deu à obra, que os leitores entenderiam sua proposta. Sim, mas isso só é possível ao final do livro, diante do espanto de não ter achado o próprio Platão. Esse, com alguma discussão de seus textos, o leitor aguardará para receber em outro momento feliz.

Rachel Gazolla de Andrade é professora de filosofia na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e autora de "Platão: o Cosmo, o Homem e a Cidade"(Vozes).

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