São Paulo, sexta-feira, 12 de abril de 1996
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Cenas do escravismo no Brasil

MARINA DE MELLO E SOUZA

Os três livros aqui tratados, escritos por professores ligados à Universidade Federal Fluminense, ganharam conforme a ordem em que são abordados, primeiro, segundo e terceiro lugares do Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa em 1993.
Hebe Castro nos presenteia com um exemplo de descrição densa ao refletir sobre os significados da liberdade no Sudeste, num momento de grande vitalidade do escravismo naquela região. Percorre o século 19, apontando três momentos distintos ao longo dos quais mudam os padrões de propriedade de escravos, de terras e de controle social baseados na cor da pele. Assim, se na primeira metade do século o modelo do escravismo colonial ainda vigorava, a partir da segunda metade fica mais difícil o acesso à terra e a compra de escravos para os pequenos produtores. Os escravos concentraram-se nas mãos dos grandes proprietários deixando de estar disseminados por todas as camadas da sociedade. O trabalho passou a ser valorizado positivamente entre os pequenos produtores e a cor da pele deixou de ser indicativo primeiro da condição de cativo com o crescimento do número de negros e mestiços livres.
Como no período anterior, a autonomia com relação ao próprio trabalho continuou sendo o atributo maior da liberdade, possível de ser alcançada principalmente com a constituição de uma família, garantidora da unidade produtiva e de uma rede de relações sociais que reconhecessem o direito sobre a terra cultivada. Dessa rede de relações comunitárias tecida pelos pequenos lavradores livres muitas vezes participavam escravos, principalmente aqueles que obtiveram de seus senhores concessões que os aproximavam dos ideais de liberdade vigentes.
A passagem do trabalho escravo para o trabalho livre, ao fim de um processo minuciosamente descrito pela autora e que culminou com a perda de legitimidade da escravidão frente a diversos setores da sociedade, marca um terceiro momento. Os escravos ganharam espaços negociados dentro da própria ordem escravista e forçaram a incorporação, como direitos universais, do que num primeiro momento havia sido cedido enquanto privilégios pessoais. Destacando o papel dos escravos e fazendeiros paulistas nos últimos meses da escravidão, aponta para a especificidade fluminense, onde grande parte dos libertos permaneceu nas fazendas e conseguiu com que suas concepções de liberdade, partilhadas com os homens livres pobres, fossem integradas às novas relações de trabalho. Sendo "os significados da liberdade o campo de luta privilegiado, a partir do qual se iriam reestruturar as novas relações de poder", os libertos conseguiram, muitas vezes, ser reinseridos no processo produtivo, mantendo o controle sobre o próprio trabalho, por intermédio de formas de parceria.
A hipótese central do seu livro é que as relações comunitárias dos escravos aproximava-os de uma visão de liberdade que partilhavam com os segmentos livres da população pobre, não se constituindo uma identidade étnica a partir da experiência do cativeiro. O esforço rumo à liberdade envolvia a construção de uma rede de relações familiares e comunitárias e um aumento dos espaços de autonomia evidenciada nas roças próprias, na possibilidade de comercialização de seus produtos e na inserção numa vida social que ultrapassava os limites da senzala. Cruzando sempre sua interpretação com uma análise dos termos encontrados para indicar a cor das pessoas, mostra como "negro" era usado referido a um passado de cativo, próximo ou distante, sendo rejeitado pelos libertos, que buscavam ser reconhecidos como cidadãos com plenos direitos, rompendo com as relações de trabalho de tipo escravista, nas quais os senhores queriam que permanecessem.
Tratando de tema crucial da nossa história, Hebe contribui de forma brilhante para um maior entendimento das relações interétnicas e entre as classes ainda hoje, pois, ao falar do "tradicional descaso com a vida dos que se encontravam fora dos parâmetros de relações pessoais que garantiam, de fato, a possibilidade da cidadania no país", parece estar falando de 1996 e não apenas dos momentos imediatamente posteriores à abolição. Sua pesquisa nos mostra que houve uma implosão, no plano da vivência popular, do quadro de referência calcado na distinção racial o que, entretanto, não significou o fim das diferenças, muito pelo contrário: nossa sociedade continua a se definir a partir de um rigoroso apartheid social.
Estudando o tráfico de escravos, Manolo Florentino distancia-se desse enfoque social e cultural, faz uma história econômica com amplo uso de material quantitativo e volta sua análise não apenas aos aspectos do tráfico ligados ao Brasil, mas também para as motivações africanas, mostrando ser este um assunto afro-brasileiro.
A centralidade do comércio negreiro na reprodução da empresa colonial é destacada por vários autores. Com eles Manolo dialoga, notando que, apesar de todos perceberem o comércio de escravos como um fluxo contínuo e barato, nunca se perguntaram o porquê de o "continente negro ter oferecido escravos durante uma longuíssima duração a custos tão baixos". Utilizando-se de vasta bibliografia africanista, discorre, de maneira inédita entre os estudiosos brasileiros, sobre os mecanismos de apresamento e formas de comercialização de escravos na África e as implicações que este comércio teve nas estruturas de poder dos estados africanos.
Ao lado disso, discordando das análises anteriores que enxergavam apenas nas grandes propriedades agroexportadoras o núcleo dinâmico da economia colonial, aponta para a importância de uma classe mercantil carioca nos negócios coloniais, sendo o tráfico um dos principais pólos de acumulação interna de capital, contestando, portanto, as interpretações que o vêem como ligado eminentemente ao capital metropolitano. Com abundância de dados mostra como o capital comercial carioca bancava integralmente essa aventura cheia de riscos, que tinha numa ponta a venda de escravos no Rio de Janeiro e na outra as expedições de comerciantes africanos, arcando com os grandes investimentos que se espraiavam pelos mercados asiáticos, europeus e africanos, além do brasileiro.
Com fina e rigorosa análise, Manolo destaca a importância dos comerciantes de almas na economia mercantil do Rio de Janeiro e se volta para um outro lado da sociedade brasileira, abordada preferencialmente pelas suas características agrárias. Delineia um integrante ativo da elite, de importância central na acumulação de capital mercantil no sudeste e como não podia deixar de ser, frequentador assíduo dos mais restritos círculos de poder.
Flávio Gomes aborda formas de rebeldia dos escravos, dividindo seu trabalho em três partes. Na primeira, reconstitui e analisa a história dos mocambos da baixada iguaçuana, que existiram de cerca de 1810 a 1880, protegidos pelos rios e pela cumplicidade de taberneiros e escravos das fazendas próximas. Com isso desvenda as redes de relações sociais e econômicas que os mocambeiros mantinham na região. Conclui que os quilombos de Iguaçu eram comunidades reconhecidas dentro da escravidão e representavam alternativas a ela, ameaçando o sistema escravista de seu interior ao viabilizarem um tipo específico de relação dos escravos fugidos com a sociedade local.
A seguir trata da revolta em Vassouras, liderada por Manoel Congo em 1838, quando centenas de escravos fugiram levando consigo mantimentos e instrumentos de trabalho numa clara indicação de que pretendiam instalar-se de forma organizada nas brenhas da serra. Busca aqui reconstruir a vida dos escravos dentro das senzalas, atento aos mecanismos que africanos e ladinos encontraram para formar novas comunidades, sob o jugo da escravidão, a partir da herança africana. Aborda também o outro lado da moeda: a repressão contra os fugitivos, as pessoas nela envolvidas, as táticas escolhidas e seus significados, os efeitos da revolta sobre os fazendeiros e as atitudes por eles tomadas frente à ameaça que ela representava.
No terceiro capítulo, referente à região de Campos, não se detém num levante que representava uma grande ameaça, mas em pequenas comunidades quilombolas que constituíram uma outra estratégia de resistência contra a escravização. Além de mostrar as relações dos quilombos com a própria sociedade escravista, questionando as características de marginalidade e excepcionalidade com que foram preferencialmente tratados, Flávio aponta a historicidade de cada uma das formas de luta, indicando como diferentes contextos produziram maneiras diversas de o escravo resistir. Seu livro é fruto de uma pesquisa documental de fôlego e contém um importante esforço de comparação, lançando muitas luzes sobre o problema da resistência escrava. A criticar, uma abundância de exemplos que mais se sobrepõem do que se completam, uma relação muitas vezes forçada entre seu estudo e a bibliografia evocada e uma certa fluidez na articulação das partes, uma vez que só muito no final o autor junta as diversas tramas que teceu ao longo do livro.
Três trabalhos de qualidade excepcional, fundamentados em rica pesquisa documental e mantendo intenso diálogo com a mais recente historiografia, merecem ser lidos e relidos, sendo certamente importantes instrumentos de trabalho para aqueles que buscam entender o Brasil. Pena que a frágil encadernação não corresponda ao sólido conteúdo das obras e ao menor descuido do leitor as folhas se soltem, tornando o manuseio dos livros um exercício de delicadeza.

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