São Paulo, sexta-feira, 12 de abril de 1996
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Maior contribuição de Lou Reed à cultura vem da linguagem

ROBERT CHRISTGAU
DO "VILLAGE VOICE"

Autor, antes dos 29 anos, de quatro álbuns duradouros e individuais com o grupo Velvet Underground, Lou Reed passou os últimos 25 anos criando uma obra solo perversamente profissional e perversamente pouco confiável.
Seu trabalho é marcado por picos aleatórios que raramente atingem a altitude de qualquer trabalho do Velvet. Apesar disso, Reed não se perdeu nem se queimou ao longo de caminho, e sim ganhou em foco e consistência.
"Set the Twilight Reeling" é seu 18º álbum solo e, como aqueles que vieram depois de "The Blue Mask" (1982), é superior à maioria dos anteriores. Certamente será lembrado como um presente de amor a Laurie Anderson, com quem Reed está desde a ruptura, em 1993, de seu casamento com Sylvia Reed, iniciado em 1980.
A opção mais lúcida é não levar Lou muito a sério, é seguir os avisos explícitos lançados por ele mesmo: "Não sou digno de confiança... sei disso", e chegar até sua música armado de distanciamento estético e ceticismo.
Só então é possível deleitar-se com a identificação que sua hiperativa manipulação de imagens, seus hábitos confessionais e suas demonstrações genuínas de emoção cedo ou tarde induzem em qualquer pessoa capaz de ouvi-lo.
A doçura irônica, a obscuridade brincalhona e as esperanças de redenção compõem as emoções das quais a música de Reed se aproxima desde "The Blue Mask". Esta adoção da norma liberal-heterossexual confunde e irrita os devotos do "freak show" de Andy Warhol, que se sentiam mais à vontade com os intempestivos desvios sexuais e o abuso radical de drogas da fase de estrela do rock vivida por Reed nos anos 70.
Mas, embora fosse agradável que o cínico que escreveu canções de amor a um travesti antes de se tornar espírito casadíssimo de poesia pura conseguisse compreender suas próprias contradições sexuais, seria tolice elevar esse desejo à condição de imperativo estético.
A contribuição de Lou Reed para a cultura mundial não tem virtualmente nada a ver com conteúdo. Tem a ver com linguagem -linguagem verbal, linguagem musical e como as duas se entrelaçam.
Pessoalmente, acho que sua vida foi salva pelo rock'n'roll. O cerne da sensibilidade de Reed é sua aversão pelo brega. Isso não equivale a negar seu lado estranho. Mas ele se mostra mais potente quando seu coração rock transcende seu distanciamento, sem rejeitá-lo. Porque seu substrato é tão forte, a música raramente fica abaixo de um nível aceitável.
O período Warner tem sido todo de boas intenções. A colaboração com John Cale em "Songs for Drella" mostrou ser tudo que se dizia dela; o socialmente consciente "New York" é tão forte em termos de guitarra que o ouvinte consegue ignorar a banalidade de suas generalizações; a meditação puramente poética sobre a mortalidade em "Magic and Loss" revela-se seu esforço mais tedioso desde "Mistrial" (86). É por isso que o gestalt malcuidado de "Set the Twilight Reeling" é estranhamente encorajador.
O clima aqui é mais reflexivo que descritivo, e Reed dá sinal de achar o fato de amar uma artista merecedor de atenção. Canções supostamente descartáveis, como "Egg Cream", "Hookywooky" e "Sex With Your Parents", se mostram vencedoras instantâneas.
Mesmo depois de elas serem digeridas, o álbum não se esgota. Reed toca a melhor guitarra de sua carreira solo, especialmente em "Riptide" e na canção-título que a segue -o clímax do álbum.
"Trade In", cuja "mulher de mil rostos", presume-se, é Anderson, e "Hang On to Your Emotions", que só poderia ter sido inspirada por amor verdadeiro, uma resenha despeitada ou um psiquiatra, deixam transparecer uma sabedoria mais clara do que qualquer coisa em "Magic and Loss".
Reed mais que uma vez se declara renascido. Isso é uma coisa na qual só vou acreditar quando o patologista mostrar a placenta. Mas estou suficientemente impressionado para tentar imaginar como talvez soe seu 36º trabalho solo, por volta do ano 2021.

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