São Paulo, domingo, 14 de abril de 1996
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A bandeira de lugar nenhum

GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A "bandeira americana", do pintor Jasper Johns, ou Mao Tse-tung, a litografia de Andy Warhol, poderiam muito bem se chamar de "os vários disfarces do demônio". São negativos ou raios X da mente desenraizada do artista. São ex-votos e souvenirs do estado desterrado do artista.
Era o verão carioca de 1970. Hélio Oiticica secava seus longos cabelos ao sol no jardim da casa de seu pai, e estava eufórico. Eu mal me acostumava àqueles dois quilômetros que separavam a minha sala de aula no Colégio Pedro 2º (onde meus colegas de classe me cobravam uma nacionalidade) da casa de Hélio, no alto do Jardim Botânico. Eu tinha 15 anos. Hélio, que para mim era o brasileiro modernista, o brasileiro da metalinguagem, do parangolé, do Cara de Cavalo, da Mangueira, da cocaína brasileira, já tinha mais de 30. Nesse dia, estava eufórico, pois iria de mudança para Nova York, e a carta de um amigo confirmava uma visita ao estúdio de Jasper Johns. Hélio corria para cima e para baixo, falava grosso e botava banca, dizendo que eu tinha que conhecer melhor o trabalho de Johns e de Rauschenberg. Na vitrola da sala era só Jimi Hendrix e na do quarto, Bob Dylan. Tudo ao mesmo tempo.
Bunker cultural
Esse tropicalismo brasileiro de Hélio me era muito familiar e falava com sotaque do Bronx. Se casava tremendamente bem com as turmas que invadiam a casa de noite, trazendo misturas inacreditáveis entre alta sociedade e "drug dealers" do morro, marginais com "appeal" de "movie stars" e transgressores culturais das galerias de arte da zona sul. Enfim, a casa de Hélio era como sua cabeça, um "nowhere land", terra de lugar nenhum, catacumba de metrópolis-qualquer, bunker cultural do século 20, um brado de independência das cidades contra a mediocridade das províncias. Ah, sim, as províncias nacionalistas.
Hélio venerava tudo aquilo que se produzia em Nova York ou em Londres. Toda arte produzida em grandes centros é descaracterizada de nacionalidade. Ela é urbana simplesmente. Essa urbanidade compreende a falta de identidade, a confusão étnica e mística que as vias de concreto propõem. É curioso notar que essa mescla criou uma identidade vulnerável no objeto de expressão da arte moderna, vulnerabilidade essa que a arte primitiva de sociedades enclausuradas há muito perderam por se erguerem por meio da construção de "demi-deuses", grandes mitos, grandes "naturezas vivas".
A produção artística dos centros urbanos é a natureza mais que morta, decrépita, mas, paradoxalmente, essa decrepitude contém todos os aspectos do homem moderno, suas várias nacionalidades -tudo justaposto, aglomerado, anárquico e fora de ordem. Nesse disfarce demoníaco, fica difícil distinguir até o sexo da obra, quanto mais a sua origem étnica. Hélio berrava de alegria, sabendo que dali a um mês estaria de pé na frente da bandeira americana de Johns, enquanto toda a esquerda brasileira queimava a mesma bandeira na Cinelândia.
Johns, assim como Hélio, aplicaram o twist a suas artes. A bandeira de Johns está tão perversamente colocada para a sociedade americana quanto os parangolés de Hélio estão para a brasileira. No entanto, ambos são hinos de amor nacionalistas, militantes de suas culturas. Ambos são críticos azedos do nacionalismo que suas obras inspiram. O artista é sempre um estrangeiro. É ridículo que tente ser outra coisa, pois pressupõe-se que o artista é, como de costume, um excluso, um "outcast", alguém que se permite citações e ilustrações que vão muito mais longe que o olho nu permite. E suas gozações com nacionalidades, patriotismos e estupros culturais são tão críticas quanto são emotivas. Tanto quanto foi emotivo e crítico a Pablo Picasso pintar "Guernica".
É fácil reconhecer o demônio em "Guernica", pois existe nela uma clara referência à Guerra Civil. Mas o centro "espiritual" dessa obra está longe de ser um retrato dessa guerra. Suas figuras deformadas e cinzas espelham a alma de um criador falando as línguas de Babel sozinho, monologando perante o eterno paradoxo que aflige o artista desde que Platão deu sequência ao rapsodista itinerante: a sua história inventada é seu berço, e seu único limite é o limite imposto pela tenacidade, ou pelo cansaço, de inventar uma nova história por dia para um novo povoado diário.
Na bandeira de Johns e na obra de Hélio existem guerras civis individuais, lutas entre o Norte e o Sul de seus caracteres solitários. Não posso separar a obra de Hélio da de Johns, apesar de não haver absolutamente nenhuma similaridade estética ou mesmo poética entre as duas. No entanto, são almas gêmeas que discursam ali seus brados internacionalistas, usando, cada uma, particularidades regionais e folclóricas que suas regiões geográficas lhes ofereceram. Trinta anos antes, Johns e Hélio eram navegantes praticantes do socialismo da Internet, onde todos os preços são -eticamente- iguais. A bandeira de Johns alcançou o preço de US$ 1 milhão em 1974 e a obra de Hélio teria o mesmo valor da de Johns se custasse um mísero cruzeiro.
Almas vazias
O teatro brasileiro não teve a mesma sorte da pintura e das letras em sua abrangência de discussão conceitual. As escolas aqui ainda discutem imbecilidades como stanislawskianismo ou não-stanislawskianismo, o "trabalho" do ator ainda não tomou proporções do físico-cientista, do criador que arregimenta forças aleatórias de onde quer que seja para penetrar sedutoramente na alma de seu povo. O retrato da alma do teatro é tão pobre, e seu egoísmo tão avassalador, que suas necessidades narcisísticas poucas vezes permitem uma conceitualização além do seu umbigo.
Seu objetivo parece nunca sair da triste tarefa de reforçar o ponto de vista de resolução psicológica e técnica em seus atores praticantes, tornando essencial que venham a público derramar suas almas vazias e burras com a aparência de que estão transbordando em "humanidades". Com exceção do CPT (Centro de Pesquisas Teatrais), de Antunes Filho, onde os atores são obrigados a conceitualizar suas tarefas no palco dentro de um macrocosmo de ações e forças, visando quaisquer informações para tanto, o teatro em geral está em déficit, pois se pendura numa parca tradição que vem se arrastando há décadas. Qual é essa tradição?
As preocupações macrocósmicas de Antunes Filho estão em minoria absoluta. Se Jasper Johns encobriu dois séculos de independência política americana com sua bandeira, ele pelo menos não estava só. Warhol o fez também através de sua paixão pelo supermercado e os grandes mitos populares. Lichtenstein o fez através da exposição e do aumento exagerado do segredo da feitura da imagem. Oldenburg o fez através da monumentalização e do derretimento da mesma. E assim por diante, cada um em seu galho, apontando para o caule e a raiz comum a todos: o elemento terra no artista flutua sobre camadas espessas de influências, maleáveis e pessoais, a ponto de sofrerem do mal itinerante (necessário) que os povos nômades sofreram no desesperador esforço de acumularem sofisticação durante seu percurso.
Estamos longe dessa sofisticação. A generosidade de Hélio ao se plantar na frente da "bandeira americana" é rara no teatro. É mais fácil desmerecer o esforço do outro do que absorvê-lo. Quando escrevi sobre o espetáculo "Ham-let", de José Celso, ou sobre o "Transilvânia", de Antunes, tentei quebrar o sigilo que envolve nossas almas nacionalistas de si mesmas. Uma prova de que esse patriotismo é um escudo de proteção desnecessário e só serve para proteger um narciso do outro, evitando o eventual transbordamento de uma imagem para dentro do espelho do outro.
Criar inimigos sempre foi e sempre será a tática de todos aqueles que não conseguem mais se olhar no espelho ou tolerar a entrada de imagens estranhas àquelas que se admira. E a cara do inimigo geralmente compreende todos os traços que a sua não tem. Tudo aquilo que a moldura do espelho contém pode ser chamado de "estrangeiro". Alguns se penteiam perante o estrangeiro e se embelezam para ele. Outros jogam pedras no estrangeiro e o estilhaçam, confirmando mais uma superstição. Pois o teatro brasileiro precisa achar uma linguagem para ele, que o reflita melhor perante ao mundo, pois essa é sua questão existencial.
Se a banda Sepultura canta em inglês, o faz porque entendeu que suas raízes existiam fora de seu corpo. Nada mais saudável para o artista. Deve ter avaliado suas influências de maneira brilhante e entendido que a particularidade de um sotaque é uma preocupação mesquinha e ínfima perante a questão maior da sobrevivência da expressão do indivíduo diante de um universo cada vez maior e mais enigmático. Qual a importância, se isso se dá em anglo-saxônico ou em latim? Antes pudesse o teatro berrar suas angústias em rap, em heavy metal, em árabe ou em finlandês, se com isso conseguisse libertar-se do fantasma do falso patriotismo que o contamina e o constrange.
Diferenciar nacionalismo de patriotismo, de xenofobia, de preservação de identidade, de limpeza étnica, de nazismo pode trazer um sorriso à face do demônio, pois a nossa confusão é o seu prazer. A defesa de certas culturas se confunde facilmente com o discurso oportunista que apropria tudo e usa o estado psicológico de uma população fragilizada para imprimir seu ódio racista e, muitas vezes, exterminador. Pois Jasper Johns, visto por Hélio Oiticica, poderia ter passado mal com pressão baixa, afinal sua "bandeira americana" poderia ser usada conforme seu consumidor. Mas a quantidade de suas conotações inspiravam Hélio -gênio do Terceiro Mundo, fascinado com o Primeiro e um expert na subversão que poderia minar o Primeiro Mundo até seu extermínio.
Hélio olhava a tela assim como Caetano olhava para a esquina da Ipiranga com a São João. O amor era igual. A angústia também. O reconhecimento dos sentimentos fatais na arte da poesia são, afinal, a verdadeira carteira de identidade e o passaporte do artista. Qual bandeira americana o Hélio via? Aquela que ele viu fincada num jardim particular em Washington, quando os EUA jogavam bombas sobre o Vietnã? Ou aquela que enrolava adolescentes enlameados em Woodstock? Ou aquela que fazia o Super Homem voar? Ou será que previa a bandeira que hoje honra os EUA de Clinton, que festeja o suprematismo do capitalismo, que festeja uma nação de novo jovem, com dezenas de jovens Bill Gates determinando o futuro das nações com hinos invisíveis e inaudíveis de emancipação do indivíduo, através da arma da paz, a tecnologia da comunicação?
Não. Hélio não via nenhuma dessas bandeiras na bandeira de Johns. Via sim, sua textura, sua capacidade conceitual, seu tamanho virtual na tela pequena sobreposta à tela maior. O que deixava Hélio sem respiração era a inteligência importada da filosofia para a pintura, ou para as artes em geral. O que deixava Hélio com arrepios era a metalinguagem que Johns conseguiu forjar.
O teatro vislumbrado
Qual é o teatro brasileiro que vislumbramos? Ou será que vale a pergunta nesses termos? Não é melhor perguntarmos "qual é o teatro que vislumbramos"?
O de Antunes Filho, que enxergou a sua "bandeira americana" quando encenou "Macunaíma", metendo em cena suas odes de amor pela ritualização que o mundo foi pescar no mundo? Foi através das obras do mundo, da obra de Bob Wilson, Pina Bausch e Kazuo Ono, que Antunes se tornou um brasileiro mais brasileiro, criando sua própria trajetória emocionante, indo até a auto-caricatura em não conseguindo mais se ver no espelho, pois seu Drácula, como todos os Dráculas, não se vê no espelho.
Ou será o teatro de José Celso, que enxergou tão genialmente a granulação de seu país, através da obra "behavioral" de Julian Beck ou Bertolt Brecht, e entendeu a conexão entre a Grécia antiga e a figura de Elza Soares dentro da gestalt de seu país?
Ou mesmo Cacá Rosset, que viu em Jarry e em Shakespeare uma maneira de universalisar a condição brasileira? Se o demônio do nacionalismo tem muitos disfarces, graças a Deus, o demônio da criatividade também tem.
As questões que atingem a arte de hoje são muito próximas das questões que afligem o homem de hoje, dentro da perspectiva de uma sofisticação tecnológica, que aproximará um do outro cada vez mais, e que facilitará sua chegada a um entendimento da grandeza (e talvez da finitude) do universo. Quem quiser tomar atitudes como as da Bósnia, tem minha total piedade. Quem quiser ficar brigando por aquela árvore ou pelo quintal do vizinho, deveria enfrentar os disfarces do demônio do nacionalismo, com direito a cozinhar no caldeirão final, sem saber quem foi seu carrasco. Raízes constituem pratos deliciosos, quando picadinhas e cozidas com muitos temperos étnicos. Mas muito mal podem fazer quando impedem que seus pés lhe carreguem para longe do espelho no qual você jogou suas dúvidas, antes de ir dormir na noite anterior.

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