São Paulo, domingo, 14 de abril de 1996
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A harpa davídica: a poesia de Israel

HAROLDO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Que sentiria um turista, visitando Roma pela primeira vez, e tentando balbuciar seu italiano de orelhada, se lhe respondessem no latim de Virgílio, Ovídio e Cícero, num latim fluente, preservado do tempo, redivivo?
Pois é o que ocorre, em medida bastante expressiva, a quem visita Israel. Nesse país foi artificialmente ressuscitado o hebraico bíblico, com suas 8.000 palavras, acrescidas das 14 mil entesouradas na "Mischná" (coletânea de leis, preceitos e comentários do "Pentateuco", recolhidos em 63 tratados; Chaim Rabin, "Pequena História da Língua Hebraica", Summus Editorial/Centro de Estudos Judaicos-USP); idioma enriquecido, ademais, pelo acervo das outras fontes disponíveis, em especial as medievais.
Esse fenômeno, por assim dizer "miraculoso", deve-se, sobretudo, ao sonho e à determinação de Eliezer Ben Yehudá e daqueles que endossaram sua campanha em prol da ressurreição do idioma bíblico e de sua reconversão em língua falada de comunicação cotidiana e em língua literária moderna. É claro que, desde a chegada de Ben Yehudá à Palestina em 1881, o processo laborioso de revivescência da língua da Torá, até a sua instituição como língua oficial do Estado de Israel e daí em diante, implicou a contribuição indisciplinada da gíria das novas gerações, dos coloquialismos transgressores da norma gramatical, dos neologismos extraídos tanto do hebraico como, por adaptação, de palavras estrangeiras. Mas é verdade que o visitante do "país da Bíblia" ouvirá, soando e ressoando na vida diária, as mesmas palavras empregadas pelos profetas em suas predicações; pelo poeta anônimo que entoou os versículos amorosos do "Shir Ha-Shirim" ("Cântico dos Cânticos"); pelo Sabedor ("Qohélet/Eclesiastes") nos ditos desencantados de sua sapiência melancólica; pelo poeta-filósofo, também anônimo, do "Sêfer Halyov" ("Livro de Jó"), nas suas dramáticas reflexões sobre o desamparo humano.
Onomatopéias
Toca o telefone, e alguém exclama: "metzaltzelim!", querendo significar: "o telefone está tocando!" (literalmente: "estão tocando o telefone!"). Ao ouvir essa expressão pela primeira vez, com sua concretude onomatopaica, fiquei encantado. Parecia-me estar escutando, através da campainha do aparelho moderno (que se diz neologicamente "telefon" em "'ivrit", designação do hebraico atual), o percutir de címbalos, o bimbalhar alegre dos cincerros de um rebanho de ovelhas tangidas por seu pastor, sob o cálido olhar da Sulamita, "negra e beleza pura" ("shehoráh 'aní ve na'váh/ nigra sum sed formosa"), não muito longe do oásis de En Ghedi... Essa expressão da fala cursiva consiste numa forma de particípio presente "continuativo", provida do sufixo -"im", que marca o plural masculino, flexão do verbo "tziltzel". Basta ir ao excelente "Dicionário Hebraico-Português" (Edusp, 1995), com que a professora Rifka Berezin enriqueceu o patrimônio cultural brasileiro, para se ter os dois significados básicos desse verbo: o consuetudinário, "repicar o sino"; o moderno, "telefonar", além de uma série de outros termos conexos, derivados da mesma raiz triconsonantal, entre os quais "tziltzul" ("chamada telefônica") e "tzeltzel" ("címbalo").
Se formos agora a léxicos especializadamente bíblicos, veremos que o vocábulo tem uma genealogia conspícua. Os lexicólogos registram "tzalal", "tingle", "quiver", ou seja: "tinir", "palpitar" ("Hebrew and English Lexicon of the Old Testament", o celebrado "Tesouro" de Gesenius, traduzido, ampliado e reeditado pela Oxford University Press); "resonant", "tinniunt aures", ou seja: "ressoam", "tinem nos ouvidos" ("Lexicon Hebraicum et Aramaicum Veteris Testamenti", o pontifício elucidário do padre Franciscus Zorell S.J.). Consta, ainda, no primeiro desses eruditos repertórios vocabulares, o substantivo "tzeltzelim", no plural, significando "instrumento musical", "címbalos". Em abono, é citado, exemplificativamente, o versículo 5, do capítulo 6, do "Segundo Livro de Samuel", no qual comparece o rei Davi, fundador da trimilenária Jerusalém, como toda a "casa de Israel" ("Beith Ishrael"), dançando diante de Adonai-O-Nome, ao som de cítaras, harpas, tamborins, sistros e címbalos ("uvetzeltzelim/ et cymbalis", no latim da Vulgata). Em latim, aliás, há um verbo, "tintinnabulare", que passou para o português (cultismo hoje de uso raro), um termo também de nítido recorte onomatopaico, do qual procede "tintinábulo", "campainha", "sineta" ("tintinnabulum", "clochette", conforme A. Ernout e A. Meillet, "Dictionnaire Etymologique de la Langue Latine").
Pois uma língua assim, tão rica de vetustez e tradição, não poderia deixar de, modernamente (como através dos séculos pós-bíblicos, na verdadeira "Idade de Ouro" da literatura em hebraico que foi o Medievo, por exemplo), produzir frutos à altura de seus esplêndidos recursos expressivos.
Elo imperial
No Brasil, temos um curioso elo com a língua hebraica: d. Pedro 2º, imperador ilustrado, que dominava as letras clássicas, o grego e o latim, era também cultor da bíblica língua semítica. Um manuscrito de seu punho, que pertenceu ao poeta romântico santista João Cardoso de Meneses e Souza, Barão de Paranapiacaba (1827-1915), e foi doado, a seu pedido, pelo conde de Afonso Celso, em 1912, ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, consiste -repare-se na singularidade- numa "versão do hebraico para o latim de alguns capítulos do 'Livro de Ruth', da Sagrada Escritura" (cf. A. Mauricéia, Filho, "Ramiz Galvão", ensaio biográfico e crítico, MEC-INL, 1972). Quanto a traduções literárias, prefiro à mais celebrada, do padre Souza Caldas ("Salmos" de Davi, 1820-1821), tardo-arcádica e raramente feliz, a do "Livro de Jó", de Elói Ottoni (ver minha reedição, prologada e anotada, em 1993, Giordano/Edições Loyola). Ambos os tradutores -refira-se- não conheciam o hebraico e partiram da "Vulgata" de São Jerônimo. A versão de Ottoni, em decassílabos de modelo camoniano, aos quais não falta um toque bocageano, influenciou, ao que é lícito supor, por sua dicção, a vertente "metafísico-existencial" das "Harpas Selvagens" (1857) de Sousândrade, já que, antes de 1852 (data da publicação no Rio de Janeiro, pela Tipografia Brasiliense de F. Manoel Ferreira, da tradução do mineiro Ottoni), o poeta maranhense se havia transferido para a capital do Império, preparando-se para viajar à Europa (F. G. Williams, "Sousândrade: Vida e Obra", Sioge, 1976).
No referente à poesia moderna temos, por um lado, a boa coletânea de Cecília Meireles ("Poesia de Israel", Ed. Civilização Brasileira, 1962), há muito esgotada e pedindo uma urgente reedição. Desconhecendo o "'ivrit", Cecília valeu-se de versões intermediárias para o francês e para o inglês, mas soube compensar com sua intuição poética e com sua competência artesanal a falta de trato com o original. Por outro lado, dispomos da esplêndida antologia organizada por Jacó Guinsburg e Zulmira Ribeiro Tavares, "Quatro Mil Anos de Poesia Hebraica" (Coleção Judaica, Perspectiva, 1969). Nessa obra alentada, como na seleta ceciliana, encontram-se já traduções dos quatro poetas que escolhi para esta apresentação: Amir Gilboa (lê-se "Guilboa", 1917-1984), Iehudá Amichai (nascido em 1924), Haim Gúri (n. 1923) e Nathan Zakh (n. 1930).
Entusiasmei-me, quando li o precioso volume da "Judaica", sobretudo com o poema "ba'aleteth" ("na treva"), de Gilboa, traduzido de modo conciso e elegante por Cecília Meireles, mas com alguma perda de energia e consequente "amaciamento" do original. Palavras-chave deste, como "éven" (pedra) e "tzevá" (tinta), são vertidas respectivamente por "seixo" e, abstratamente, "cor". Àquela altura, cheguei a corresponder-me com Gilboa, expressando-lhe minha admiração por sua poesia e enviando-lhe meu poema-livro "servidão de passagem", traduzido para o inglês pelo poeta Edwin Morgan de maneira muito eficaz. Em 14/02/63, recebi de sua parte amáveis palavras de acolhida: "Minha impressão é que o senhor encontrou em si próprio a coragem para livrar-se de muita coisa, a fim de expressar o essencial -poesia concreta, de fato!".
Poetas
Só em abril de 1994 tive a ocasião de visitar Israel, em companhia de minha mulher, Carmen, graças à iniciativa da Associação Universitária de Cultura Hebraica, de São Paulo, apoiada pelo Instituto Cultural Israel-Ibero-américa, de Jerusalém. Pudemos então, Carmen e eu, prestar nossa homenagem à viúva do poeta, senhora Geny Gilboa, que nos recebeu com muita gentileza em sua casa de Tel Aviv, presenteando-me com textos de Gilboa em versão para o espanhol. Posteriormente, obtive cópia xerográfica dos originais do poeta, por intermédio de Nilli Cohen, dinâmica diretora do Instituto de Tradução da Literatura Hebraica, também sediado em Tel Aviv. De Gilboa, que nasceu na Polônia e emigrou em 1937 para Israel, traduzi o "Canto Azul e Vermelho" ("Shir kahol ve'adom"). Nesse poema, deixam-se claramente evidenciar a concretude e a originalidade do poeta no trato com a palavra e a sintaxe (a sua peculiar "logopéia", ou seja, "a dança do intelecto entre as palavras", na terminologia poundiana, algo equivalente à "poesia da gramática" postulada por Roman Jakobson).
Por outro lado, em Jerusalém, conheci pessoalmente Yehudá Amichai. Nascido na Alemanha, emigrado para Israel em 1936, é o mais famoso poeta vivo do país. Indicado para o Prêmio Nobel, é autor de uma poesia sutil, com toques metafísicos, que se deixa atravessar, frequentemente, por laivos de ceticismo irônico. De Amichai traduzi "Um Vale Imenso" ("'Êmeq rahav niftáh"). A ele dediquei também um poema de minha "Harpa Davídica", série de textos inspirados na visita ao "país da Bíblia", dos quais dou aqui uma breve mostra.
Finalmente, verti um poema de Nathan Zakh, com quem pude travar conhecimento numa recepção oferecida pelo culto e gentilíssimo embaixador do Brasil (à época), diplomata Ivan Canabrava. Zakh, originário de Berlim, portador de um doutoramento na Universidade de Essex (Reino Unido), professor da Universidade de Haifa, é assinalado pela crítica como o criador de uma anti-romântica e distanciada "poesia do desdém". No texto por mim traduzido, "Quando Você Chamou" ("Keshetziltzalet", uma forma feminina do verbo "tziltzel", de início focalizado, significando mais propriamente "quando você -uma interlocutora feminina- chamou-me ao telefone"), esse diapasão amargo-irônico não exclui uma nota de funda emoção, de lirismo seco, desencantado, quase telegráfico.
Quanto aos meus poemas aqui estampados, gostaria apenas de referir que o tríptico "vela", "velas" e "quindi uscimmo" (de "quindi uscimmo a riveder le stelle"/ "e então saímos a rever estrelas", Dante, "Inferno", 34, 139) reflete a experiência pungente da visita que Carmen e eu fizemos ao Yed Vashém (Museu do Holocausto) e seus anexos (Recinto dos Nomes, Recinto da Recordação, Memorial das Crianças), no Monte Herzl.

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