São Paulo, domingo, 14 de abril de 1996
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A prosa judaica entre dois pólos

Como conciliar riqueza espiritual e globalização?

MOACYR SCLIAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Durante quase 2.000 anos o texto -a Bíblia, o Talmud, as obras literárias de escritores como Scholem Aleichem e Peretz- constitui-se, para o povo judeu, numa pátria metafórica, um território imaginário que acompanhava este sofrido grupo humano em sua peregrinação pelo exílio, ajudando a manter sua coesão e sua esperança.
Dois acontecimentos mudaram radicalmente esta situação: o Holocausto que, por sua brutalidade, sacudiu a consciência da humanidade e colocou o anti-semitismo na categoria de praga social, e a criação do Estado de Israel, que de imediato atraiu uma grande corrente migratória, não só de refugiados da Segunda Guerra, como de judeus do Norte da África e do Oriente Médio. A partir de então, a vida judaica passou a girar entre dois pólos: Israel de um lado, e os países do Ocidente (Europa, América Latina, Canadá, mas sobretudo Estados Unidos), de outro. No meio, ficava o judaísmo da Europa Oriental, no passado o berço da cultura iídiche, mas agora constrangido pelo autoritarismo a abdicar de sua voz -optando, nos últimos anos, por uma maciça imigração para Israel.
Os dois pólos da cultura judaica, embora em permanente comunicação, foram se diferenciando cada vez mais. Em Israel existe hoje uma pujante literatura, criada por escritores vigorosos, alguns dos quais tive oportunidade de conhecer numa recente visita: Aharon Appelfeld, David Grossman, A. B. Yehoshua. Juntamente com dois outros que não pude encontrar, Amos Oz e Yehuda Amichai, eles estão, seguramente, no primeiro time da moderna literatura israelense, ainda que Appelfeld, como já veremos, se constitua em caso à parte.
Eles escrevem em hebraico, o que já é um milagre: um idioma que durante dois mil anos permaneceu praticamente litúrgico, o latim do povo judeu, renasce, inclusive com gíria, expressões idiomáticas e neologismos -agora, a propósito, ao alcance do leitor brasileiro, graças ao excelente dicionário hebraico-português da professora Rifka Berezin, que também traduziu, junto com sua equipe, estes e outros autores, que têm prestígio internacional, frequentemente ocupando a primeira página de importantes suplementos literários como o "The New York Times Book Review".
"Vento amarelo"
Grossman, A. Yehoshua e Amos Oz são sabras, israelenses nativos. Até há alguns anos, os escritores de Israel eram emigrantes; sua língua nativa e sua cultura de origem eram outras. Nascer em Israel significa viver, desde o berço, num país em permanente efervescência, um país que progride assombrosamente, mas que é perseguido pelo espectro da guerra. Não é de admirar, portanto, que o conflito árabe-israelense esteja presente em suas obras, ficcionais ou não.
David Grossman, por exemplo, é autor de "Vento Amarelo", coleção de ensaios que retrata a sua convivência com os palestinos (o título alude a uma lenda árabe, segundo a qual um vento amarelo soprará do deserto, calcinando os inimigos do Islã). O livro provocou polêmica e Grossman foi objeto de furiosas acusações, mas seu diagnóstico sobre as precárias condições de vida nos territórios ocupados estava certo, assim como estava certo o seu prognóstico: pouco depois, eclodia a Intifada, o levante palestino. Os escritores israelenses são, de certo modo, profetas redivivos, a consciência da nação: é raro encontrar um país onde os intelectuais tenham um papel tão importante nos constantes debates sobre o destino do país.
Como foi dito acima, Aharon Appelfeld tem uma posição peculiar neste contexto. Sobrevivente do Holocausto, onde perdeu os pais, salvando-se por milagre, Appelfeld retorna constantemente à memória do extermínio: "Badenheim 1939", que é talvez a sua obra mais conhecida, recria o clima de pesadelo na Europa à beira da Segunda Guerra. Dar testemunho é para Appelfeld uma obsessão literária; sua literatura está indissoluvelmente ligada à história.
"De tempos em tempos, um novo carregamento de história chega", suspira o notável poeta Yehudá Amichai. Como Appelfeld, Amichai veio da Europa; emigrou da Alemanha em 1936. Mas sua atitude em relação à pesada carga do passado é diferente. "O ar de Jerusalém está saturado de orações e sonhos", diz em "Ecologia de Jerusalém", e completa: "É difícil de respirar". É com ironia que ele reage à fixação no passado, por ele identificada nos judeus da diáspora. "Turistas": "Para visitas de condolência estão aqui/ sentados no Memorial do Holocausto, fazendo caras sérias/ no Muro das Lamentações,/ rindo atrás de pesadas cortinas em quarto de hotel".
O poema termina com uma historieta: "Uma vez eu estava sentado nos degraus perto do portão na Torre de Davi, tendo ao lado dois pesados cestos. Um grupo de turistas estava ali, junto ao seu guia, e eu me tornei ponto de referência. 'Vêem aquele homem com os cestos? Um pouco à direita de sua cabeça há um arco do período romano'. E eu pensei comigo mesmo: a Redenção virá só quando lhes for dito: 'Vêem aquele arco do período romano? Não tem nenhuma importância, mas perto dele está um homem que acabou de comprar frutas e verduras para sua família' ".
"We don't need you anymore", disse o iconoclasta A. B. Yehoshua numa palestra para os participantes de uma reunião do Congresso Mundial Judaico, a maioria deles americanos. O pronunciamento teve enorme repercussão, mas o que o escritor queria dizer era exatamente isto: Israel é um país independente, maduro, pode caminhar com seus próprios pés.
E o outro pólo?
A literatura judaica em países como os Estados Unidos tem uma história natural, vinculada estreitamente com o fenômeno da emigração. Uma tradicional anedota ajudará a compreender esta história. Refere-se a uma moça, de uma afluente família judaica na Rússia do começo do século. Ela está para dar à luz; a família aguarda, ansiosa, enquanto o médico, sentado numa poltrona lê desesperadamente. 'Está vindo, está vindo', grita a jovem parturiente -em francês, o idioma da sofisticação russa. 'Ainda não', diz o médico, e continua a ler. 'Está vindo, está vindo', grita de novo a jovem, desta vez em russo. 'Ainda não', assegura o médico. Finalmente a moça grita, em iídiche -"oi, mame!"- e o médico se põe de pé: agora sim, o parto está começando.
A primeira geração, no Novo Mundo, é a geração do iídiche. A geração dos recém-chegados, às voltas com o drama da sobrevivência. Esta é a geração da mãe judia, esta superprotetora criatura, que faz de tudo para alimentar a prole. Sobrevivência é o tema desta geração, não literatura. Não há tempo para escrever, não há tempo para aventuras intelectuais. Esta é a geração das vísceras, do estômago que é preciso forrar.
A segunda geração, formada pelos filhos dos emigrantes, encontra uma situação melhor. Já não comparte com os pais a ansiedade pela comida; geração educada, tem outras necessidades, entre as quais a expressão literária. Para o que está devidamente aparelhada; já não fala o iídiche, um idioma de circuito fechado, incorpora a língua do país, que desenvolve, até como um mecanismo de compensação, ao ponto do virtuosismo. Mas é também uma geração sofrida, cheia de conflitos com os pais; envergonham-se dessas criaturas incultas, que falam uma língua arrevezada, mas de quem receberam a vida, e a quem amam. É a geração do coração; coração partido, mas coração. A geração que se refugia no marxismo ou no divã do analista.
Philip Roth é o paradigma desta geração, "O Complexo de Portnoy", o seu épico (épico meio irônico, mas o que se poderia esperar?).
Esta é também a geração que encontra o Estado de Israel. E este encontro, como seria de esperar, não é isento de surpresa ou mesmo de choque. Philip Roth sintetiza a situação numa hilariante cena. Alexandre Portnoy conhece, em Israel, Naomi, uma sabra ruiva e sardenta que ele tem a esperança de conquistar: "Como a minha vida iria mudar! Um homem novo com esta mulher!". Mas Naomi, egressa de um kibutz, despreza os "corruptos padrões" que formaram Portnoy. Desesperado, ele tenta agarrá-la à força, segue-se uma luta corporal, e ele acaba desistindo: "Não adianta, não consigo ter tesão neste lugar".
Geração cerebral
Se a primeira geração é visceral, e a segunda regida pelo coração, a terceira -cujos signos são o computador, o pós-moderno, o neoliberalismo- é a geração cerebral. Relativamente livre de conflitos, num mundo em que o anti-semitismo é coisa de fanáticos, esta geração pergunta-se o que, afinal, representa ser judeu.
Curiosamente é a mesma pergunta que muitos se fazem em Israel. Não os religiosos, naturalmente, para quem esta indagação não tem sentido. Mas àqueles que viam no judaísmo uma tradição histórica, uma forma de cultura, uma condição de vida, a pergunta se impõe: como conciliar uma herança feita de sofrimento, mas de notável riqueza espiritual, com a homogeneização cada vez mais crescente, com a geléia geral da globalização? Esta dúvida persiste nos dois pólos do judaísmo. Encontrar respostas -forçosamente diferentes- é o desafio para os escritores israelense e judeus neste fim de milênio.

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