São Paulo, domingo, 14 de abril de 1996
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As máscaras da América Latina

IRLEMAR CHIAMPI
ESPECIAL PARA A FOLHA

São diversas as estratégias que o escritor porto-riquenho Luis Rafael Sánchez inventa para transformar fatos da vida cotidiana em experiências simbólicas da cultura latino-americana.
Em "A Quaracha do Macho Camacho" (1976) -o romance que lhe deu fama e reconhecimento internacional-, um enorme engarrafamento de trânsito em San Juan é o pretexto para fazer convergir falas e fluxos de (in)consciência de burgueses e proletários, numa dança alucinada de histórias entrelaçadas. Tudo ritmado pelo batuque afro-antilhano -que o virtuosismo de Sánchez transfere para a prosa narrativa- de uma escandalosa guaracha cuja letra o rádio alardeia sem parar: "A vida é uma coisa fenomenal/ tanto faz pra frente como pra trás" (na excelente tradução de Eliane Zagury para a Editora Francisco Alves em 1981).
Emblemática, a guaracha apócrifa sintoniza a imagem de um país entorpecido culturalmente pela condição de colônia tardia dos Estados Unidos e pelo conflito perpétuo de suas elites divididas entre anexionistas e independentistas, enquanto a plebe trata de desculpabilizar-se no gozo do consumo e do kitsch.
Noutro romance, "La Importancia de Llamarse Daniel Santos" (1988), Sánchez usa o recurso da pesquisa de campo, mediante um "cidadão da noite" que perambula, gravador à mão, por toda sorte de boteco do continente à escuta de relatos sobre o legendário cantor de boleros. O escritor, disfarçado de antropólogo, resgata pela memória do "cantado" e das vozes supostamente gravadas dessas testemunhas, a vida aventureira de Santos, sua trajetória de boêmio inveterado, de Don Juan caribenho infatigável em suas orgias amorosas.
A vasta geografia percorrida -de Guayaquil e Cali a Caracas, do México e Manágua a Santo Domingo e Quito, de Bogotá ao Panamá e Manhattan- e captada pela fina audição dos sotaques regionais, não oculta a sua condição de território simbólico: é a "América amarga, a América descalça, a América em espanhol", que a voz arcaica, passional, do ídolo popular unifica para as massas iletradas, com as letras das suas canções dolentes.
O gravador fingido de Sánchez é a memória do escritor dos trópicos que faz a arqueologia da modernidade em nossas urbes caóticas para encontrar, no melodrama das cuitas amorosas dos marginais da história, o refúgio para a fúria destrutora do presente.
Como dramaturgo, Sánchez intensifica os efeitos da representação, explorando ao máximo os vieses desse eterno faz-de-conta que é a vida latino-americana. Em sua peça "Quíntuplos" (1984), com estréia marcada em São Paulo, seis monólogos de cinco irmãos (três mulheres e dois homens), culminando com a do Pai no final, se oferecem num Congresso de Assuntos de Família.
O público, que só percebe aos poucos que se trata do experimento de um congresso -uma versão pós-moderna do teatro dentro do teatro-, não assiste porém a dissertações elaboradas sobre a crise da célula familiar, nem a cenas típicas da vida cotidiana com suas miudezas e realismos.
Em princípio, os Morrison são uma trupe de artistas contratados (não se sabe por quem), para animar e divertir o público com suas histórias e seu exotismo, segundo um roteiro preparado pelo Pai, que recomenda sempre a improvisação aos seus rebentos. Mas nesse "gran teatro del mundo", de ressonâncias calderonianas, ninguém é o que parece e cada monólogo deixa-se interpretar como irrisão de um significado arquetipal.
Dafne, por exemplo, apresenta-se como grande estrela de cinema de peitoril generoso e maquiagem drag; solta-se em gestos amplos de vedete de teatro de revista, e tiques que misturam Maria Félix, Ava Gardner, Marilyn e Bardot, enquanto reconta seus maridos. Mas a fêmea voraz, de beleza mortal, "aspirante a mito", faz cinema só para dublar a voz da noiva do Mickey Mouse; paga pelos beijos de fogo de um garoto -que é gay- e todo o seu mistério se esfuma no patetismo de querer ser rumbeira cubana num circo. "Ninguém é como quer ser", filosofa essa leitura de Corín Tellado (autor de folhetins no mundo hispânico), que raciocina com canções de Libertad Lamarque e Toña La Negra.
Na versão masculina do mito, brilha o Grande Macho latino-americano que encarna Mandrake Morrison, o mago sedutor e sinuoso em seu andar tangueiro, verdadeiro caudilho de bigodão negro, charmoso e bem falante, que cheira a rum e assassina homens e mulheres com sua mirada de "charro" (o cowboy mexicano).
A virilidade do filho, mulherengo e cafajeste, completa-se, mas também inverte-se, na do Papai Morrison. "El Gran Semental" (o Garanhão Mor) faz finta de malandro fino e romântico becqueriano, mas aparece imobilizado numa cadeira de rodas cibernética (graças a uma escalada noturna ao balcão da mulata jamaicana), enquanto celebra e lamenta a sua viuvez.
O monólogo final exacerba a simulação, o querer ser, a falta de autenticidade dos mitos formadores da cultura latino-americana. Aqui, o Patriarca, o princípio ordenador, já é um Falo sem função, um sol excêntrico e como tal uma irrisão da Origem, uma paródia da fonte da identidade. Nessa leitura, é significativa a ausência da Matriarca (a esfumada "soledad Niebla", ou Saudade Névoa, não participa da farsa), morta ao dar à luz e mal recordada pela prole, que tem assim cancelada metaforicamente a sua matriz.
As máscaras dos Morrison caem sucessivamente, ao som de um bolero de Rafael Hernández ou Pedro Flores, quando as suas ilusões medíocres e os seus fracassos se expõem como chagas pelo próprio excesso que afetam, pelo artifício e paroxismo de suas interpretações. As alusões aos motivos barrocos do êxtase/dor, a referência constante aos gestos de improvisar, mimar, imitar, dirigir, fazem da peça uma meditação sobre o gênero dramático, na grande tradição que vai de Shakespeare e Calderón a Pirandello e que Sánchez já havia explorado em pelo menos cinco de suas oito peças anteriores.
Em "Quíntuplos", o comentário metalinguístico erige-se como consciência da teatralidade e reforça menos uma poética do gênero do que a crítica corrosiva da vida e do destino de Porto Rico -a "Ilha Encantada", a "Pérola do Caribe"-, sempre projetada para o grande cenário do continente.
Por isso, a questão da nossa identidade -à que estamos condenados, conforme Octavio Paz- torna-se tão legível por entre os mitos e ideologemas suscitados pelos truques e maneirismos desses Morrison.
Em princípio, são hispânicos americanizados -ou vice-versa-, mas carecem de um perfil regional específico, graças a uma habilidosa conjunção de fragmentos e recortes de várias nacionalidades, especialmente tirados da música, do cinema, da cultura média urbana, de tradições populares variadas. Mas essa conjunção não forma uma "suma". Nisto, Sánchez, mais próximo a Severo Sarduy ou Manuel Puig, coloca-se numa posição pós-novo romance (anos 60): não reivindica uma Ontologia, uma Essência latino-americana, ainda que radicada na diferença ou outridade; não postula uma originalidade da mestiçagem, um "real maravilhoso", por exemplo, como queriam Carpentier, Asturias, Rulfo, García Márquez ou Fuentes.
Não sobreexiste, no vaudeville dos Morrison, a utopia de que o nosso "ser" esteja cifrado num grande metarelato, numa fábula emblemática, em personagens maiores e singulares, ou ainda numa remota autoctonia indígena.
O Pai Hispânico ou o Padrasto Norte-Americano são duas paternidades igualmente abomináveis, demasiado presentes, porém, para que alguma ilusão de pureza genealógica permita superá-las (Sánchez não reclama a cultura borincana ou boricua).
Os quíntuplos são uma espécie de horda pós-macondiana (há pelo menos duas alusões a "Cem Anos de Solidão"), prestes a fugir com o Grande Circo Antilhano, sempre ameaçada pelos estragos dos furacões do Caribe e pelo cumprimento das maldições dos manuscritos de Melquíades.
Esse alerta para o possível "viento verde" da destruição poupa, talvez, o projeto de Sánchez de certo pessimismo pós-utópico e nos mantém atentos para os mecanismos da lógica perversa que marca a história da América Latina desde a colonização européia.

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