São Paulo, domingo, 14 de abril de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

As proteínas que imitam micróbios

VANESSA DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Não é um ser vivo. Não tem material genético e não se reproduz. É uma proteína, e não um ser vivo a responsável por uma doença incurável de nome estranho, encefalite espongiforme, que leva à loucura e à morte ovinos, bovinos e homens.
Descoberto há 14 anos, o príon, sigla em inglês para "partícula infecciosa proteinácea", poderia passar outros tantos anos confinado dentro de laboratórios sendo estudado à exaustão, não fosse a "doença da vaca louca" ter se tornado tão popular. E tão temida na Europa e no mundo.
No mês passado, o governo britânico admitiu que dez casos de uma doença conhecida como Creutzfeldt-Jakob, ou simplesmente CJD, poderiam ter sido causados pela ingestão de carne contaminada com a "doença da vaca louca", que atingiu bois e vacas britânicos na década de 80.
Alguns pesquisadores sugerem que os dez pacientes --oito já morreram- teriam sido contaminados da mesma forma que os bovinos que, já se sabe, pegaram a doença comendo ração feita com restos de ovelhas que tinham a encefalite.
Dogma
Mais do que responsável pela CJD, que atinge 1 homem em 100 milhões, o príon é também responsável pela queda de mais um dogma da ciência: o de que um agente infeccioso é necessariamente um ser vivo. E de que o modo de funcionamento desse ser é programado pelo seu material genético.
"Toda essa história de uma proteína infecciosa é revolucionária. Estamos derrubando novamente mais um dogma da ciência", disse Carlos Menck, geneticista do Instituto de Biociências da USP.
Segundo Menck, com a descoberta do príon, pesquisadores tiveram que deixar de lado a idéia de que toda a informação necessária para a construção e funcionamento de um ser vivo estaria contida em duas moléculas: no ácido desoxirribonucléico (DNA) -a grande maioria dos seres vivos- ou no ácido ribonucléico (RNA), como no caso de vírus como o HIV, causador da Aids.
"Agora o que vemos é uma proteína carregando informações que são passadas a outras proteínas. É essa proteína que diz, de uma forma especial, o que a outra vai fazer", diz o pesquisador".
Super-resistente
Todos os mamíferos têm príons, fabricados por um gene. Genes são trechos do material genético (DNA) responsáveis pela fabricação de uma proteína.
Essas proteínas, chamadas príons normais, ou PrPc, são encontradas em todas as células do corpo, mas especialmente nas células nervosas.
Mas há um segundo tipo de príon, que pesquisadores acreditam ser o responsável pela "doença da vaca louca", pela CJD humana e pelo "scrapie" dos ovinos.
Esse príon, chamado PrPsc ou príon infeccioso, é a "forma maléfica" da proteína, aquela que age como uma espécie de microorganismo causador de infecção.
"Príons infecciosos têm características especiais: raios ultravioleta e gama, altas temperaturas, e substâncias que destroem proteínas, que matam vírus ou bactérias, não o anulam", diz Menck.
Segundo o cientista, isso favoreceu a hipótese, já aceita por pesquisadores, de que bois e vacas pegaram a doença ingerindo carne de ovelhas contaminadas.
"Ao ser ingerido, o príon infeccioso cai no sistema digestivo, mas como é resistente, não é digerido, podendo cair na corrente sanguínea e ser levado até o cérebro".
Alguns cientistas propõem que, se isso aconteceu às vacas, também poderia acontecer ao homem. A última idéia não foi provada.
"Corruptor" de proteínas
Como explicar uma infecção sem que haja reprodução, como acontece com todos os organismos causadores de doenças?
Pesquisadores como o descobridor do príon, Stanley Prusiner, da Universidade da Califórnia em São Francisco (EUA), propuseram que o príon infeccioso é uma espécie de "corruptor" de proteínas.
Quando um príon infeccioso entra em contato com príons normais, eles se modificam um a um, numa lenta reação em cadeia.
Nada parecido com uma reprodução "clássica" de uma bactéria ou vírus, capazes de fazer cópias iguais de si mesmos.
"Imagina-se que o príon infeccioso entre em contato com um príon normal, fazendo com que ele mude de forma. Há outras proteínas que agem assim', diz o cientista Carlos Menck.
Cientistas também sugerem que o tempo de "incubação" do príon, que pode levar até 35 anos para provocar sintomas, se deva ao fato de a reação em cadeia acontecer muito lentamente.

Texto Anterior: Qual a origem da gravidade?
Próximo Texto: A doença do cérebro esponjoso
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.