São Paulo, domingo, 14 de abril de 1996
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Uma aventura literária pelas redes digitais e neuronais

Computador de 'Galatea 2.2' enfrenta riscos do pensamento

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Um grande número de regras delta em recorrência constante, reavaliando e atualizando a si mesmas." Não é exatamente o que se espera como resposta à pergunta: "O que é o homem?" Mas Philip Lentz também não é exatamente um cientista romântico, muito embora esteja no centro de um grande romance da ciência. É dele que parte a idéia de treinar um computador para a leitura e interpretação de textos literários e é ele quem, maliciosamente, convoca para tanto os esforços de "Richard Powers".
O nome vai entre aspas para não ser confundido com Richard Powers, autor de "Galatea 2.2". Um e outro estão escrevendo o seu quinto romance, animados pelo sucesso de "The Gold Bud Variations" -outra obra de ficção, por falta de outro nome, científica- e, mais recentemente, pelo premiado "Operation Wandering Soul". Um e outro conquistaram uma temporada como escritor em residência numa grande universidade americana. Mas "Richard", ao contrário de Richard, está em plena crise sentimental e criativa, incapaz de tomar uma atitude ou escrever uma palavra, gastando seus dias passeando pela Internet. É no momento em que faz do homônimo uma personagem -seu autor- que os dois se transportam, afinal, para as terras mais ricas da literatura.
A duplicidade de um personagem-autor faz contraponto com o tema central do romance, que é uma anatomia da consciência. Como tantas outras fábulas de identidade dos últimos 200 anos, de Wordsworth a Proust, de Freud a Musil, Joyce e Beckett, "Galatea 2.2" reanima nossa obsessão com os descompassos entre nós e o pensamento. O romance moderno, em especial, parece ser feito para a projeção da consciência. O romancista naturaliza o pensamento, que, nem por isso, deixa de marcar um limite da representação.
O que há de notável, em Richard Powers, é a capacidade de conjugar esse tema antigo com a pesquisa, aparentemente muito diversa, que agora se dá nos campos da ciência cognitiva, da informática e da neurobiologia. Ninguém sabe o que causa a consciência, e alguns até duvidam que ela exista. Nossa intuição é que uma calculadora, quando dá resposta certa a uma equação, não está "pensando" como nós pensamos. Mas qual é a diferença? "Ser e pensar são uma coisa só", dizia o filósofo pré-socrático Parmênides. Mas quando é que uma máquina começa, de fato, a pensar? Perguntas como essa fazem parte, hoje, do repertório científico, não só metafísico. Fazem parte, também, da literatura.
Assim como o HAL do filme "2001 - Uma Odisséia no Espaço", o computador de Powers e Lentz, que a princípio é pouco mais que uma caixa de combinação de palavras, gradualmente vai adquirindo o que se pode chamar de uma personalidade. Da compreensão elementar da língua até as primeiras histórias são necessários vários estágios e transformações de circuito, cada um envolvendo outros tantos enigmas humanos da parte de "Powers", recém-saído de um desastre amoroso. Por volta da página 100, já estamos no Modelo H, que se comunica verbalmente coma ele e em breve será capaz de assumir uma identidade sexual e um nome de menina.
Construída com base nas teorias do conexionismo, a estrutura de "Helen" baseia-se na capacidade de "estimulação reflexiva": entre ela e seus predecessores a grande diferença é sua capacidade de simular, internamente, outra simulação semelhante a si mesma. Isto significa se autotreinar, ou aprender com a experiência. (Computadores já fazem isto, hoje em dia.) "Incluindo tudo em si, a mente inclui, como um detalhe, a si mesma, com todas as suas inclusões." Esta é uma frase de William Empson, comentando obras do poeta setecentista Andrew Marvel; mas serve igualmente para descrever as redes neurais de Lentz.
Powers, o autor, é um virtuose do vocabulário e da descrição. Um neurônio é o ponto "enarmônico" de inumeráveis constelações; e o significado, para manter a mesma metáfora musical, "não é uma questão de alturas, mas de intervalos". Embasbacado pela presença, à distância, de uma aluna de pós-graduação, futura desafiante de Helen e companheira virtual de "Powers" em sonhos de solteiro, ele compara sua passagem pelo corredor a "uma reportagem de guerra, sem o som".
Memoráveis como são, exemplos como esses não dão, porém, a medida do que há de mais insólito no seu inglês. Boa sorte ao tradutor que aceitar o desafio de aliterações nabokovianas, de inumeráveis alusões (Keats, Blake, Donne, Yeats, Whitman, Shakespeare) e sequências de palavras como esta, recolhida ao acaso no espaço de dez páginas: "contrapposto", "jag", "almostness", "scrimshawed", "ethernetted", "kludge", "spelunking". Gastando seus dias na WWW, culpado por não fazer nada, "Powers" mesmo assim "não seria sequer capaz de alterar o temperamento de um ácaro, acampado nos cílios da manifesta sobrealma digital". Nesses pontos, o livro parece se alimentar de alguma linguagem combinatória fantástica; como a de um cientista fabricando metáforas, ou, quem sabe, um computador.
Ao contrário dos livros anteriores, não há aqui nenhum artifício explícito de tipografia e narrativa. Mas a sucessão de personagens cujas iniciais vão compor o nome "Richard", as simetrias e ecos que cruzam o livro de ponta a ponta como uma corrente nervosa entre o tálamo e o córtex, as alusões à mitologia e à literatura, as inversões entre "consciência" e máquina -especialmente nas subtramas que envolvem doenças mentais-, a dramatização repetida de deslocamentos e readaptações: tudo isto parece calculado para simular e frustrar o funcionamento de uma enorme máquina pensante.
Perto do final, confrontado com os desafios de Helen -"quantos livros existem? por que os homens escrevem tanto?"- o narrador cita o posfácio a "Lolita", em que se descreve o desenho de um macaco, primeiro exemplo conhecido de arte animal: "Um esboço tosco das barras de ferro da jaula". São tantas as jaulas, no caso, que fica difícil privilegiar qualquer uma: a consciência, a inconsciência, a ciência, a literatura. A matéria em luta consigo mesma vai refazendo labirintos, minotauros, algoritmos, Galatéias. Só é pena que o livro, visto como um todo, não tenha mais vigor para resistir à acomodação ocasional em outras jaulas, do sentimentalismo e do clichê, para não falar na solução religiosa, intensamente americana, no fim.
Resenhando o livro para a revista "The New Yorker", John Updike confessou-se emocionado pelas decisões de Helen, quando toma contato com a realidade extraliterária do mundo. Mas este é o lado religioso e intensamente americano do próprio Updike, conjugado decerto à percepção de que o jovem romancista Richard Powers é muito mais um admirador do que um rival. Há alguma coisa de Helen, bem mais que de Ovídio, ou George Bernard Shaw, neste novo Pigmalião; uma inocência tocante na máquina, menos admirável do autor.
"Galatea 2.2" é um entretenimento sofisticado, e uma introdução, à sua maneira, às mitologias e aventuras da ciência. Na medida inversa de suas ambições, o livro nos convoca a reavaliar um certo número de regras delta em recorrência constante. Meia dúzia de amores e nostalgias são facilmente esquecidas entre os 100 bilhões de neurônios do cérebro. Resta o romance de uma grande história, alterando a força de conexões em rede, e repetindo, reflexivamente, a comédia de riscos, acertos e erros que é o que se chama de pensamento.

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