São Paulo, quinta-feira, 18 de abril de 1996
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Ética da malandragem

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Um deputado federal da base governista divulgou, na semana passada, um interessante e edificante paradoxo. Declarou que a sua mudança de voto na reforma da Previdência lhe causara "grande sofrimento interno" e que aguardava ansioso a liberação de verbas prometidas em contrapartida pelo governo federal.
"Até para fazer uma coisa que não é correta, tem de existir ética dos dois lados. É a chamada ética da malandragem", afirmou com comovente sinceridade.
São crescentes as indicações de que essa curiosa variante da filosofia moral vai, pouco a pouco, tomando conta das relações entre o governo federal, a sua base política e a plutocracia financeira.
É a velha história: todos clamam pelo ajuste das contas públicas, mas ninguém hesita em arrancar vantagens do Orçamento federal ou do Banco Central (BC).
Ao ceder a essas pressões, o governo federal vai consolidando um padrão de comportamento. Generaliza-se a convicção de que os setores com poder de pressão acabam conseguindo impor os seus interesses particulares.
Cada concessão serve de precedente para novas pressões e concessões, tornando mais e mais problemática a indispensável consolidação das finanças públicas.
Um exemplo recente dessa tendência foi o compromisso assumido pelo presidente da República de "federalizar" a dívida mobiliária da Prefeitura de São Paulo.
Na semana em que se votava a questão da Previdência na Câmara e a CPI dos Bancos no Senado, Paulo Maluf declarou que o presidente do BC deveria ir para a cadeia, verbalizando a indignação da opinião pública com o tratamento dado a bancos privados.
Mas havia, ao que parece, um motivo mais subjetivo para a violência verbal do prefeito: a demora ou relutância do BC em atender pleitos financeiros de São Paulo.
Ato contínuo, Paulo Maluf foi recebido pelo presidente da República e brindado com o compromisso de que a rolagem da dívida mobiliária seria assumida pelo BC. E o partido do prefeito votou com o governo nas duas questões em discussão naquela semana.
Belo exemplo! Naturalmente, o Banco Central e a sua diretoria saíram imensamente reforçados do episódio.
Pelo que se sabe, a operação acordada, e ainda não concretizada, consistirá essencialmente no seguinte: títulos da prefeitura, num total de R$ 3,3 bilhões, serão trocados por títulos federais. A Prefeitura passará a dever ao BC. Os títulos da cidade de São Paulo serão retirados de circulação e substituídos por títulos de emissão do BC.
Desse modo, a dívida mobiliária federal, que já vinha crescendo de forma explosiva no passado recente, aumentará em mais R$ 3,3 bilhões.
Nada mau para um governo ferreamente comprometido com austeridade na gestão das contas públicas!
Do ponto de vista da Prefeitura de São Paulo, a operação será inegavelmente vantajosa.
Em fevereiro, o total da dívida em títulos emitidos pelo município alcançava R$ 4,1 bilhões. O montante a ser trocado por títulos federais corresponderá, portanto, a nada menos que 80% do total da dívida emitida.
Como parte da emissão deve estar em tesouraria, a troca abrangerá, provavelmente, um percentual ainda maior da dívida em mercado.
Assim, às vésperas das eleições municipais, a Prefeitura de São Paulo obterá expressivo alívio financeiro, à custa das finanças da União.
A menos que FHC esteja disposto a violar a chamada "ética da malandragem", mais um obstáculo terá sido colocado no caminho do saneamento das contas públicas.

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