São Paulo, quinta-feira, 18 de abril de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Prioridades e festival de hipocrisia

ALOYSIO BIONDI

Há dois meses, o caderno regional desta Folha publicou uma das histórias mais comoventes dos últimos anos -e, além de emocionante, reveladora das aberrações que vêm marcando o uso de dinheiro público pelo governo.
Em uma cidadezinha do interior paulista -narrava a minirreportagem-, os presos da cadeia local formaram um consórcio "sui generis": os participantes pagavam uma quantia mínima por mês para comprar algo sonhado por todos. Pura e simplesmente a liberdade.
Não pense o leitor que o dinheiro se destinava a suborno ou "compra" de fuga. Não.
Um preso mais instruído havia descoberto que muitos colegas de cela estavam ali havia meses, sem necessidade: haviam cometido crimes leves, não tinham antecedentes, poderiam esperar a decisão do juiz em liberdade. Mas não tinham dinheiro para pagar a fiança que lhes garantiria a soltura.
Surgiu, então, a idéia de fazer uma "vaquinha", ou um consórcio, realizando-se um sorteio mensal para decidir qual preso teria sua fiança paga com o dinheiro de todos.
Preço de fiança do primeiro libertado, razão da minirreportagem: R$ 70. S-e-t-e-n-t-a r-e-a-i-s.
Por esse valor, os governantes brasileiros mantêm homens e mulheres no horror das prisões, privados não apenas de liberdade, mas, consequentemente, da própria vida. Semi-enterrados. Dormindo em pé em celas apinhadas.
Histórias comoventes parecem ter perdido o dom de comover na sociedade brasileira de hoje. Então, deixem-se de lado sentimentos de solidariedade humana e invoque-se o argumento econômico, a pedra de toque dos governantes atuais.
Cada preso custa ao Estado, em média, R$ 500 por mês. Ou R$ 6.000 por ano. Com ínfimos R$ 70, ou R$ 100 ou R$ 200 pode-se libertar um preso detido por crime afiançável. Uma economia de R$ 5.900 ou R$ 5.800 por ano, por preso.
A libertação de milhares de presos traria uma economia de centenas de milhões de reais para os governos estaduais. Assim, compensaria largamente a contratação de funcionários em caráter temporário, para acelerar o processo de libertação desses presos.
E a sociedade aplaudiria a criação de um fundo, com seus recursos destinados a pagar a fiança daqueles que não têm dinheiro.
Ninguém, nos governos, fique arrepiado com a proposta: nada seria feito por humanitarismo. Mas para economizar. Por dinheiro. "Money".
De quebra, a sociedade ficaria livre do festival de hipocrisia representado pelas declarações e entrevistas na televisão e nos jornais de governadores, secretários e "especialistas" do setor penitenciário, ou defensores dos direitos humanos que só dão o ar de sua graça quando há rebeliões ou massacres nos presídios.
Apitaço
No ABC paulista, principal centro operário do país, usuários promovem "apitaços" contra o estado calamitoso dos trens de subúrbio e transportes coletivos em geral.
Para reorganizar todo o sistema de transportes da região metropolitana da Grande São Paulo, bastariam R$ 250 milhões.
Prioridade
O governo Covas, com o apoio financeiro da equipe FHC/Serra/BNDES, vai aplicar R$ 1 bilhão na construção de quatro quilômetros do metrô (da avenida Doutor Arnaldo até o largo da Batata).
O custo
No começo de 1995, a equipe FHC não liberou dinheiro para o Ministério da Saúde combater o início de um surto de dengue no país. Eram poucas dezenas de milhares de reais.
Agora que a doença virou epidemia, anuncia-se verba para combatê-la. São R$ 4,5 bilhões (com b) em três anos. Preço invisível do "controle do Orçamento".
Conivência
Relatório ainda sigiloso, revelado parcialmente por jornais, diz que o Banco Central iniciou as investigações sobre possíveis fraudes e desvios no Econômico há seis meses. Isto é: somente em outubro ou novembro.
O Econômico quebrou em agosto. E vinha sendo socorrido pelo governo havia 24 meses.
Abafa
As investigações sobre o Econômico somente surgiram por causa das reações do Congresso à ajuda aos bancos. E, mais ainda, porque o Ministério Público anunciou que iria exigir a apuração do caso. E se não fossem essas reações?

Texto Anterior: Ética da malandragem
Próximo Texto: Saiba como declarar aposentadoria
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.