São Paulo, quinta-feira, 18 de abril de 1996
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Mãe da aviadora deveria ser processada

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

Se a justiça humana funcionasse nos EUA, a mãe da menina aviadora que morreu na semana passada deveria ser processada por homicídio culposo, junto com, entre outros, os responsáveis pela aviação civil no país.
Mesmo que se venha a provar que o instrutor de Jessica Dubroff estava no comando do Cessna monomotor quando ele caiu durante tempestade de chuva e gelo, a garota estaria viva não fossem a imprudência de seus pais, a negligência das autoridades aeronáuticas e a conivência de milhões.
Aos 7 anos não se deve pilotar aviões. Contrariar essa obviedade com a justificativa da necessidade de se respeitar o direito infantil de exercer liberdade, como faz a mãe de Jessica, é um delírio filosófico.
Nessa idade, é comum o desejo de pilotar aviões. Ou de voar pela janela como um pássaro. Ou de ser bombeiro e resgatar vítimas de incêndio. Ou de qualquer outro produto da imaginação.
Aos pais cabem os deveres de conter os impulsos dos filhos, explicar a eles o que a realidade permite e impede, cuidar de sua segurança.
Lisa Hathaway teve Jessica em casa, na banheira, sem ajuda de médicos. Impediu-a de frequentar escola. Proibiu-a de ver TV. Tudo em nome de uma estilo de vida "new age" levado ao extremo.
Ela diz ter dado à filha o direito de escolher tudo, como supremo valor existencial. De fato, no entanto, Hathaway decidiu por Jessica o repúdio ao ensino estabelecido e à cultura de massa.
Lloyd Dubroff incutiu na filha o desejo de quebrar um recorde absurdo, o de pessoa mais jovem a cruzar os EUA no comando de uma aeronave.
Psicólogos asseguram que aos 7 anos não se sabe direito o que é um recorde e nem ainda é possível se sentir uma pessoa autônoma.
A ambição desvairada de estimular o sucesso precoce dos filhos produziu infinitas tragédias existenciais, o fracasso emocional de milhões de pessoas e alguns grandes desastres noticiados com destaque, como este.
Não apenas aos pais cabe responsabilidade no caso de Jessica. Todo o país sabia que ela estaria no comando do Cessna na viagem de oito dias entre Califórnia e Massachusetts.
Mas nenhum funcionário do órgão encarregado de controlar os vôos civis no país se incomodou em impedir que o de Jessica ocorresse, embora a lei proíba que menores de 16 anos pilotem.
Pilotos atrasaram vôos regulares de empresas comerciais no mesmo dia e hora em que Jessica decolou de Cheyenne por achar arriscado voar sob as condições atmosféricas do momento.
Mas os responsáveis pelo aeroporto de Wyoming não proibiram que a menina levantasse vôo. Por que a urgência? Porque ela tinha prazos a cumprir com programas de TV que a aguardavam nas paradas seguintes.
O que leva a mais alguns cúmplices no homicídio de Jessica Dubroff: os produtores e patrocinadores desses programas, que promoveram e estimularam a realização do seu "sonho".
A rigor, os indiciados poderiam ser muitos mais. Todos os que se encantam com a idéia de crianças-prodígios em qualquer atividade típica de adultos (dos esportes à ciência ou à arte) deveriam responder pela morte de Jessica e por pequenos assassinatos a longo prazo de meninos e meninas que tiveram as vidas destruídas por sua excepcionalidade mal-encaminhada.
A insanidade de se permitir que Jessica fosse colocada na missão que lhe deram é ostensiva. Mas ela foi aplaudida por milhões de espectadores antes e depois do desastre da semana passada.
Por exemplo, o religioso encarregado de presidir a cerimônia oficial em memória de Jessica no domingo afirmou que mais trágico do que a sua morte seria tê-la impedido de sonhar.
Uma sociedade que permite a ocorrência de episódios como este e incontáveis outros similares com desfechos menos dramáticos precisa de urgentes e radicais correções de rumo se não quiser condenar-se à bancarrota.

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