São Paulo, terça-feira, 23 de abril de 1996
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Cachorros rebelados à porta do açougue Brasil

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Sr. Wanderley, mande vir abaixo este pano infame que queremos despedaçá-lo! Abaixo o pano infame! Fora o presidente traidor!"João José Alves Senhoras e senhores, Mr. Isso, Herr Aquilo, Mrs. Fulana, Frau Sicrana, primeiramente me dêem seus cordiais pêsames. Quatro vezes já falei em público pelo Brasil -muita coisa para alguém que ainda não chegou aos 40 anos-, convidada em Portugal, nos Estados Unidos e na Alemanha. Lugares demais para quem não tem o que acrescentar aos destinos do mundo.
Mas o dia de representar o Brasil é hoje, por minha conta -a gargalhada amarga, a crítica fácil. Também tenho direito de fazer a crítica fácil. Não me foi possível ter ídolos brasileiros. As gerações imediatamente anteriores à minha me envergonham.
Uma única palavra resumiria meu discurso. Afinal, quantas palavras são necessárias para expressar o que se viu do massacre dos sem-terra, a cena encarnada no asfalto da rodovia PA-150, no Pará?
Afinal, em se tratando de cachorros, basta o faro; palavras são dispensadas. Os sem-terra do Brasil são como cachorros sem dono implorando por um pedaço de carne à porta do açougue. Só que, no Pará, em Eldorado dos Carajás -o nome irônico dos eldorados brasileiros-, eles se cansaram das pedradas, se rebelaram contra os açougueiros, os donos da carne e dos ossos.
Vão prender um ou dois policiais analfabetos, ignorantes, que agiam sob as ordens do coronel Pantoja (prendem o coronel por alguns dias), ele que, por sua vez, agia sob ordens do secretário da Segurança Pública (existe um no Pará, Paulo Sette Câmara, que receberá talvez uma advertência).
O secretário, também por sua vez, recebia ordens do governador Almir Gabriel (do PSDB, nesse ninguém rala a mão), pau mandado dos latifundiários, da assassina bancada ruralista do Congresso Nacional -não é estranho que ninguém tenha ouvido falar em bancada ruralista nesses últimos dias. Estão todos calados, acuados, os mentores e mandantes da carnificina.
Aqui a lei só pune os miseráveis. Ainda que alguém seja preso pelo crime do Pará, fugirá da cadeia -afinal não andam soltos até hoje os assassinos de Chico Mendes?
Este discurso vai para o sem-terra Limiro Geraldo de Souza, ferido no ombro. A culpa é dos políticos e do Presidente, Limiro. De todos os presidentes da República e nossa, que votamos neles. Desde sempre, desde o sr. Wanderley, presidente da província de Salvador em 1854, qualquer um.
Pois é. Adianta votar, Limiro? Não adianta. O sistema é podre. Não é possível que se erre sempre. Luto, bandeira a meio pau, o pano infame. É isso, senhoras e senhores, ladies and gentlemen, meine Dame und Herren. Brasil, f... you!

E-mail1mfelinto@folha.com.br

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