São Paulo, terça-feira, 23 de abril de 1996
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Caruaru mostra que miséria é mercado

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

- Agora chega! O senhor tem que me ouvir! Pensa que eu sou moleque?
Dr. Evangelista, o ex-chefe de uma clínica de hemodiálise de Caruaru, o ex-neurologista acusado de ocultar torturas na década de 70, o ex-deputado e doutor honoris causa pela faculdade de nefrologia de Petrolina, parou a entrevista, arrancou o gravador de minhas mãos e sapateou-lhe em cima como bailarina espanhola.
Eu, pobre repórter, me encolhi num canto, olhado por seguranças-jagunços. Vi naquela ira santa a certeza fanática que era uma forma de razão. Calei-me, eu que acusara este diretor de corrupção e desleixo, pela nova leva de 50 mortos.
Antes que o dr. Evangelista despejasse em mim todo o seu ódio, o outro entrevistado ali na sala, que eu também atacara no jornal, o Dr. Pereba, acusado de vender órgãos humanos, o Pereba, ex-alcaguete, ex-faxineiro e ex-chefe do Serviço de Armazenagem de Corpos do IML, atacou-me também:
- Só não lhe dou um tiro na cara porque tenho uma filha. Noiva. Uma filha noiva!
(Minha reportagem tinha lhes valido a demissão e ambos estavam sendo processados pelo Governo.)
- É tiro mesmo que estes jornalistas merecem, fez dueto o Dr. Evangelista. Vocês ficam com esse lero-lero humanista, mas não sabem o que é ganhar a vida "dentro" do Brasil real.
Como é que o senhor quer que haja hemodiálise perfeita no coração da miséria? (Eu olhava o gravador esmagado e os jagunços). Isto aqui é uma guerra suja, meu amigo, uma guerra feita de trapos, de fezes, de barro. Veja as feições da população aqui do Nordeste; é claro que em meio a estes jegues, a estes sacos de farinha, a estas sandálias havaianas de plástico que vendem na feira, é claro que as máquinas de hemodiálise alemãs ficam "depaisées", ficam "fora do lugar"... (Deus, aquilo era mais que uma reportagem, era a moral da imoralidade).
As máquinas chegam brilhando, novinhas, no início, mas, aos poucos, a mão invisível do erro começa a polui-las. O Governador disse que a culpa é minha pelos 50 mortos (e vai subir!) Eu digo que a culpa é da Companhia Pernambucana de Saneamento, que nos manda água suja.
A verdade, seu babaca, é que a culpa é bem distribuída. Há, aqui no Nordeste, a lógica da morte. Vocês no Sul podem ficar neste faniquito de vida, nesta onda do "que horror!"... Aqui não temos estes luxos. Aqui, morte é mercado, meu amigo. Quem não mata, não vive!... (Eu tentava gravar cada frase na cabeça)
- Ah, ah... gemeu o Dr. Pereba, o contrabandista de órgãos. É isso aí, doutor Evangelista, faço das suas palavras as minhas...
- Quem não mata, não vive! -continuou o médico, sem olhá-lo. Meu amigo, na circulação de mercadorias da morte, entenda bem, se eu ficar com frescura, estou morto também... É feito o sujeito resolver ser a favor da vida, dentro da guerra... Ou morre de bala ou fuzilam como desertor ou é chamado de viado...
Aqui é igual. O SUS, veja, me deu 1.800.000 reais estes meses. Grana legal. Eu sou a clínica privada. Qual meu lucro? Quanto menos qualidade, mais lucro, sacou? O SUS nos dá lucro pela "menos-valia", uma nova figura econômica... ah... ah... Quanto pior o serviço, melhor. Já pensou, aguinha filtrada, tudo brilhando para aqueles miseráveis verdes de mijo que vão morrer mesmo?
Ah... eu não sou filtro de pobre... Vou lhe dizer uma coisa profunda, meu amigo, eu estudei, estudei... E, apesar da besta do meu sogro me chamar de "incapaz", vou lhe dizer: Vocês, "homens de bem", não estão aparelhados. Hoje, os fatos vão além das interpretações... A violência é maior que qualquer piedade, sacou? Vem pra cá, vem para a latrina moral em que eu vivo! Ah, Ah... (O homem dava patadas no chão, explodindo de gozo em sua ignominia).
Dr. Pereba, o legista, atacou, eufórico:
- É isto aí, doutor! Sabe quanto está custando um fígado, meu chapa? (Eu olhava em lágrimas meu gravador) Um fígado legal, não fígado de biriteiro, um fígado de bacana atropelado? 300 dólares, ali na hora, quentinho na mão. Dá pra dispensar? E o leite das crianças? Vá se danar, cara.
E um bom rim? Rim do sul, nada de rim de Caruaru! (Ele riu para o doutor, que olhou duro) Pois um rim jóia custa até mil dólares. E aí? Vou ficar olhando aqueles "presuntos" ali na mesa dando sopa? Nem pensar... É melhor que tirar rim de criança raptada. Tudo bem, não tenho nada contra; feito com classe, tudo bem, baixinho bobeou, pega, tira um rinzinho e devolve para a mãe.
Mas eu prefiro os "presuntos". Tenho filhos também, coisa e tal, e uma filha noiva! E aqui não é mole não; só tem doente. A margem de acerto é de um para cada quatro órgãos retirados. País "sub" é fogo; é o Brasil, que se vai fazer? E o senhor já viu um necrotério? Já fez serão em dia de desastre? Vale a pena...
Virou um ônibus na Dutra. Quem cuidava? O babaca aqui, que era "caxias". Sabe quanto ganha um legista do 1º Grau? 500 reais. Não dá nem para o almoço. Levava marmita. Almoçava lá na mesa de dissecação... Necrotério já foi bom, meu amigo. Havia respeito. Necrotério é verba, meu amigo, verba. É fácil falar mal...
- Muito bem, Pereba, atalhou o Dr. Evangelista, já há uma nova moral! O Pereba é um homem simples mas disse tudo. Miséria também é mercado, idiota! Com a globalização, só nos resta otimizar os restos da feira. Vejas as Igrejas Universais... Vendem o quê? Miséria para os miseráveis! Esperança para os pobres. Só tem que "otimizar"! Miséria é poder! Veja os usineiros de álcool. Empregam trabalho escravo e conseguiram descolar mais subsídios para "não haver desemprego"...
Ah, ah... Eu arrebento de rir... Eles usam mão-de-obra escrava de índios guaranis-caiuás e garotinhos de 10 anos... E ganham subsídio... ah... ah... a gente paga...
- E tem mais -voltou animado o Pereba- agora vou te dar uma bomba, bomba! (Pisou no gravador de novo, para se garantir) Mês que vem teremos o 1º Congresso de Comerciantes da Miséria. Para otimizar a circulação do mercado. Vai todo mundo. Lá estarão os cafetões de putinhas infantis, os escravistas de índios, os contrabandistas de órgãos (o Degas aqui), os empreiteiros de aleijados, os estrategistas de fraudes do INSS, os exportadores de nenês, todos. A Igreja do Edir vai emprestar a sede. Tema: otimização de resultados.
Exemplo: a putinha se gasta no Ceará, é exportada para Serra Pelada, depois pode ser bóia-fria, depois mulher "de ganho" pedindo esmolas e, quando morre, eu tiro os órgãos que ainda prestam, "xotinha" claro que não! Ah... ah... Tudo no computador, sob controle... É a racionalização da produção, meu amigo, comércio sem fronteiras, tudo numa espécie moderna de Mercomerda! Sacou? (Eu olhei com vergonha meu gravador moralista no chão. Evangelista e Pereba me olhavam do alto. Eles eram o novo Brasil. Baixei a vista. Eu era um pobre diabo do passado.)

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