São Paulo, terça-feira, 23 de abril de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ilegalidade autorizada

DALMO DE ABREU DALLARI

Escreveu Marcel Camus que, em certas circunstâncias, o sistema judiciário pode ser apenas "uma forma legal de promover injustiças". Recente decisão do órgão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo permite acrescentar que uma decisão judicial pode ser "uma forma legal de autorizar a prática de ilegalidades".
Várias ações judiciais foram propostas por entidades diversas visando barrar a implantação de um plano ilegal de saúde no município de São Paulo, ambiguamente denominado Plano de Atendimento à Saúde (PAS).
De início foi obtida decisão judicial proibindo a implantação por decreto, como pretendia o prefeito.
Depois disso, tendo montado um "rolo compressor" na Câmara Municipal, o prefeito conseguiu a aprovação de uma lei contendo várias inconstitucionalidades e ilegalidades, entre elas a autorização para dispensa de licitação.
Em vista dessa nova situação, e justamente preocupadas com os desastrosos resultados da privatização ilegal e improvisada, várias entidades representativas dos médicos ingressaram no Judiciário pedindo a declaração de inconstitucionalidade dessa lei municipal.
Tendo em conta a existência de ilegalidades muito evidentes, que não dependem de prova, bem como a situação caótica dos serviços, decorrente do improviso e da justificada resistência dos servidores, foi pedida a concessão de liminar para suspensão imediata da implantação coercitiva do PAS.
Num despacho longo e bem fundamentado, em que demonstra serem claros os sinais de inconstitucionalidade, o presidente do Tribunal de Justiça concedeu a medida liminar em 12/1/96, ficando suspensa a aplicação da lei.
O efeito imediato dessa decisão deveria ter sido a volta ao estado anterior, com o que o contrato irregular entre a prefeitura e a Cooperativa Pirituba/Perus seria considerado inexistente, restabelecendo-se ali a gestão e operação dos serviços pela municipalidade.
Mas, por vários motivos, entre os quais certamente se inclui uma ambígua relação com alguns desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo, o prefeito Paulo Maluf respeitou apenas em parte aquela decisão judicial, deixando de implantar novas privatizações, mas ao mesmo tempo mantendo aquilo que já tinha sido implantado com base no contrato ilegal.
E continuou a fazer publicidade cara e vistosa do PAS, para felicidade e anestesia de alguns grandes veículos de comunicação de massa.
A par disso, o prefeito recorreu da concessão da liminar e, em 13/3/96, conseguiu que esta fosse revogada por decisão da maioria dos membros do órgão especial do Tribunal de Justiça.
Um ponto é fundamental: nem antes nem agora o Judiciário disse que não há inconstitucionalidade e ilegalidades no PAS. Os argumentos da bem fundamentada liminar concedida pelo presidente do Tribunal de Justiça contra o PAS continuam inteiros e válidos.
Estranhamente os membros do órgão especial preferiram deixar para ocasião futura a decisão sobre as imperfeições jurídicas, liberando o prefeito para praticar as ilegalidades reconhecidas pelo presidente do Tribunal. A decisão do órgão especial do Tribunal paulista foi baseada apenas em argumentos de conveniência, ignorando a questão da legalidade, que nesse caso não deveria ter sido ignorada em vista do despacho meditado do presidente.
Isso não deixou de causar estranheza por vários motivos. Ainda recentemente houve ataques da imprensa ao Judiciário porque este, cumprindo seu dever constitucional, tem concedido liminares contra atos do Executivo federal ou dos Estados quando há sinais de inconstitucionalidade. Na realidade o Poder Judiciário tem afirmado corretamente, por meio dessas decisões, que não há ilegalidades convenientes.
E agora afirmou o contrário. Além disso, o que se verificou logo após a autorização dada ao prefeito era mais do que previsível: foi acelerada a implantação improvisada de novas cooperativas, com o desmonte do sistema municipal de saúde.
Se o Tribunal adotar aqui a lentidão programada, como fez no caso do IPTU paulistano de 92, só julgado em 95, dentro de três anos virá a decisão sobre a legalidade do PAS, quando os fatos já tiverem tornado irreversível a entrega ilegal dos serviços e do patrimônio a entidades privadas privilegiadas.
É profundamente lamentável que o Tribunal de Justiça, por alguns de seus membros, tenha desprezado o Direito numa situação que permite dúvidas quanto à imparcialidade.
Se não houvessem outras razões para dúvida, basta assinalar que o mesmo prefeito já teve cinco desembargadores como secretários de seus governos e, quando candidato a prefeito, recebeu notícia antecipada de uma importante decisão de um desembargador para que a explorasse em sua campanha.
O mínimo que o Tribunal deve fazer agora é decidir rapidamente quanto à legalidade do PAS, decidindo a favor ou contra, mas tomando por base uma sólida fundamentação jurídica.
O sistema judiciário é um serviço público e é em nome do povo que os juízes decidem. Por isso o povo tem todo o direito de criticar as decisões e de exigir que elas sejam jurídicas e justas.

Texto Anterior: Entenda-se como quiser
Próximo Texto: Apartheid social
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.