São Paulo, quarta-feira, 24 de abril de 1996
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Punição faz justiça mas não previne massacres

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O massacre dos sem-terra no Pará horroriza, claro, a opinião pública. Mas o ombudsman da Folha, Marcelo Leite, disse algumas coisas amargas em sua coluna de domingo que expressam perfeitamente minha opinião.
"Os 42 de Caruaru e os 19 de Eldorado serão, amanhã, notícia de anteontem. Seu destino é o dos 111 do Carandiru, dos 21 de Nova Brasília. O país do futuro tem pressa de esquecer." Quantas mortes, quantos massacres! E o da Candelária? Alguém se lembra?
Até que lembrar-se, mais ou menos, a gente se lembra. Os 111 do Carandiru são difíceis de esquecer. Mas e daí? Operários ocuparam, há tempos, a CSN em Volta Redonda. Morreram alguns, não me lembro quantos, fuzilados não sei por quem. Repito a pergunta: e daí?
Passado o impacto inicial, a opinião pública reage de duas maneiras. Uma é exigir a punição dos responsáveis. A outra é falar da necessidade de reformas sociais, notar o avanço da barbárie e a iminência de uma ruptura no status quo.
As duas reações são corretas, sem dúvida. É preciso punir os autores de um massacre como o de Eldorado, como o da Candelária, como o do Carandiru, etc. etc. É preciso fazer reformas sociais, a desigualdade no Brasil é pior do que na Índia, gente morre de fome, a saúde pública é um desastre, a violência policial, as favelas etc. etc.
Vivemos, entretanto, de sustos rotinizados, de "alertas" superficiais, de sobressaltos sem consequência. Não é preciso nenhum confronto de sem-terras para perceber que é dramática a situação no campo. Não é preciso nenhuma revolta de presidiários para perceber que as condições carcerárias são desumanas no país. Não é preciso ver pessoas morrendo na hemodiálise para perceber que algo vai mal no sistema hospitalar.
Embora necessário, acho um pouco bobo o movimento de caça aos responsáveis, todo esse palavrório pelo fim da impunidade. Claro que não sou a favor da impunidade. Mas acho que se criou uma espécie de vício retórico em torno da questão.
Tudo começou com a Lei da Anistia, em 1979. Permitia a volta dos antigos inimigos do regime militar. Mas anulava também os crimes de quem torturou e assassinou presos políticos. Essa foi a primeira vez em que o termo "impunidade" ganhou conotações de esquerda. Depois disso, a corrupção generalizada deu novo alento a essa exigência. Acontecem massacres e queremos novamente o fim da impunidade.
Começa, entretanto, uma caça algo ridícula aos responsáveis. Em última análise, o responsável por tudo é o presidente. Mas o próprio FHC empunha a bandeira do fim da impunidade. Já lançara, sensacionalmente, a notícia de que prenderia os banqueiros que cometerem crimes.
Todos sabemos que responsabilidades são dificílimas de apurar e que é totalmente subjetivo e político o movimento de atribuir a qualquer autoridade -presidentes, ministros, chefes disto ou daquilo- a culpa pelo que acontece no país. Sabemos que os crimes de colarinho branco são complicadíssimos de apurar. Juridicamente, não há provas contra Collor.
Pouco importa: Collor, na sua biblioteca da Casa da Dinda, é exemplo de "impunidade". Na minha opinião, podem punir à vontade, pois o problema não é esse. Talvez o coronel X hesite um pouco mais antes de disparar seus tiros contra mulheres e crianças. Mas há sempre um coronel Y que não hesitará.
Punição é bom porque faz justiça, mas duvido que previna qualquer massacre. O canalha que quer massacrar é alguém que perdeu a consciência no momento, embriagou-se com a posse de armas de fogo, sente-se acima da lei e dá tiros em crianças como quem chuta uma lata de coca-cola vazia.
Pode-se dizer: mas se houver a ameaça de punição, certamente os governadores não irão permitir que tropas da PM entrem armadas em conflitos desse tipo. Em parte, concordo. Em parte, duvido. Porque os sem-terras estão armados também e, ainda que pouco armados, vão se armar mais, obviamente. E se a PM não massacrar, os jagunços dos latifundiários massacram sem problema, a dez ou vinte reais por cabeça.
Admito que o raciocínio acima seja muito conservador. Mas explico. Pensar o que ocorreu em Eldorado segundo os critérios da "impunidade" ainda é pensar a questão social como "caso de polícia", só que com sinais trocados politicamente.
Pensemos então o problema como "caso social". Aí as coisas se complicam. É simplesmente ridícula a disputa em torno do número de famílias que o governo deveria assentar. Planejava umas quarenta mil este ano. Assentou só sete mil, dizem.
Mas que brincadeira é essa? Se há vinte, trinta ou quarenta milhões de miseráveis no Brasil, todo o cálculo em torno do número de famílias, toda a dimensão da pretensa reforma agrária se reduz a pouco mais do que o destino dos camelôs irregulares na cidade de São Paulo.
Nesta ótica, tudo termina sendo um problema marginal, distante, como quis fazer crer o presidente FHC nos primeiros momentos do episódio.
Foi preciso que a televisão mostrasse um pouco das cenas anteriores ao massacre para a opinião pública acordar para o drama dos sem-terra. Bem disse Esther Hamburger, em coluna recente para a Ilustrada, que o discurso do melodrama, da novela, confunde-se com o do noticiário. O problema social no Brasil é muito mais grave do que vinte ou trinta mil famílias querendo assentamento. Só aparece quando há um massacre sensacional, e então todos se perguntam quem são os responsáveis, como há algum tempo perguntaram, e se esqueceram da resposta, quem matou Odete Roitman.
Não haverá reforma agrária no Brasil. Mesmo que assentem todos esses que acampam nas estradas, o efeito será mínimo. No Japão, o exército americano acabou com a iniquidade social no campo, fazendo valer a força de seus tanques de guerra. Deu certo. Na Bolívia, no México, fizeram a reforma agrária e a situação social não melhorou.
O Congresso está e sempre esteve nas mãos de quem concentra a renda e preserva a injustiça social. Toda a modernidade de FHC, como a de JK, de Vargas, sempre dependeu das oligarquias latifundiárias. O modelo brasileiro de desenvolvimento se baseia em atrair à periferia favelada das cidades vastos contingentes de miseráveis, que se viram pedindo grana nos sinais de trânsito. Nem os mais destituídos estão dispostos a pegar na enxada. É muito pior.
Vamos conviver com massacres -o soldadinho da PM é zeloso ao cumprir o seu dever-, com miseráveis nas ruas -o bom homem da classe média paga seu pedágio cordial-, com latifundiários -garantem reformas "modernizantes" para o governo de plantão-, com sem-terras e militantes pedindo justiça.
Não vejo saída para essa situação, uma vez que há impasses óbvios em jogo: normalidade institucional (Congresso) versus iniquidade latifundiária; opinião pública noveleira versus sandinismo católico e conservadorismo do Vaticano; seduções do consumismo marginal urbano versus modéstia da vida agrária; crença num progresso dependente do investimento externo (onde garantir a estabilidade da moeda e salvar bancos falidos é essencial) versus justiça para os deserdados da terra.
Podemos chorar com o massacre, exigir o fim da impunidade, etc., mas o destino do país está traçado, e quem espernear contra ele que se cuide, pois qualquer mudança significativa acarretará sacrifícios (nos padrões de consumo, na inserção internacional, no nhenhenhem tecnológico) que não são fáceis de encarar.

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