São Paulo, quinta-feira, 25 de abril de 1996
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Engarrafamento e paixão

MOACYR SCLIAR

Tudo começou numa tarde em que o trânsito estava particularmente congestionado. Parado havia vinte minutos, com uma série de compromissos, ele não sabia o que fazer. A vontade que tinha era de abandonar o veículo e sair a pé, como o Michael Douglas naquele filme, quebrando tudo. Mas ele não ganhava o cachê que o Michael Douglas ganha, e também não tinha tanta coragem. De modo que deixou-se ficar ali, tamborilando impaciente os dedos no volante.
De repente bateram no vidro. Ele de imediato -assalto, sequestro?- se assustou. Mas aí viu que era uma garota, de uns 20 poucos anos, bonitinha, sorridente. A pesada maquiagem e o traje sumário não deixavam dúvidas sobre a sua profissão. Suspirando, baixou o vidro.
- Não quer aproveitar? - perguntou ela.
- Aproveitar o quê?
- O engarrafamento - piscou um olho - É bom para relaxar. E o preço é uma promoção.
Ele não pode deixar de sorrir. Subitamente tentado, perguntou:
- Você acha que dá tempo?
Ela olhou os carros parados.
- Claro que dá. Há um acidente feio lá na frente. Antes de meia hora isto não mexe. Se você for rápido...
Ele era rápido. Além disto, o veículo, um furgão fechado, ajudava. Ela entrou e fizeram amor sobre o colchão que ele, por puro acaso, tinha comprado naquele mesmo dia. Foi uma experiência surpreendente: a garota era mesmo um demônio. Mais quando foi embora, os carros não tinham avançado um milímetro. Não perdera nada.
A partir daí, os encontros se sucederam. Ela o esperava no mesmo lugar. Mesmo quando não havia acidentes, o congestionamento lhes dava tempo suficiente. Ele nunca se sentira melhor, o colchão que tinha no carro revelara-se superior a qualquer divã de analista.
Acabou se apaixonando. Passou a morar com a moça num subúrbio, era uma casa mais modesta, mas pelo menos ele não enfrentava o trânsito. Para a mulher, mandou uma carta:
"Não volto mais para casa. Com esse congestionamento, não daria mesmo."
É feliz. De vez em quando até fazem amor no furgão. Só para matar saudades.

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