São Paulo, domingo, 28 de abril de 1996
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O homem na lua

LEWIS CARROLL

Sílvia e Bruno aproximaram-se obedientes e eu os conduzi pela mão até Mein Herr, sentado sozinho num canto. "Você não se opõe à presença de crianças, eu espero?"
"Os velhos rabujentos e os jovens não podem viver juntos!", ele replicou alegremente, saudando-nos com um sorriso cordial. "Olhem para mim, crianças: vocês podem ver que eu sou um homem velho, não é?"
À primeira vista, embora o seu rosto lembrasse misteriosamente o do Professor, percebia-se que se tratava de um homem mais jovem; porém, quando sondei a extraordinária profundidade de seus grandes olhos sonhadores, senti, com uma espécie de vertigem, que ele era incalculavelmente mais velho: era como se nos observasse de uma época muito antiga.
"Não sei se cê é um homem velho", Bruno respondeu, quando as crianças, seduzidas pela voz amável, aproximaram-se mais dele. "Eu acho que cê tem 83."
"Ele é muito preciso!", exclamou Mein Herr.
"E Bruno por acaso acertou?", eu perguntei.
"Existem razões", Mein Herr replicou gentilmente, "as quais não tenho a liberdade de expor a você, que me impedem definitivamente de mencionar Pessoas, Lugares e Datas. Contudo, me permitirei uma observação: o período de vida de um homem, entre os 169 e os 175 anos, é um período particularmente seguro."
"Como foi que você chegou a essa conclusão?", eu indaguei.
"Assim: você consideraria a natação um passatempo seguro, se soubesse que nunca se morre afogado. Ora, com toda a certeza você ainda não ouviu falar de alguém que tenha morrido entre aquelas duas idades!"
"Compreendo o que você quer dizer", eu comentei. "Mas não sei se você poderá provar que a natação é um passatempo seguro, pelo mesmo princípio. Não é raro ouvirmos a notícia de que alguém se afogou."
"No meu país", respondeu Mein Herr, "as pessoas jamais se afogam."
"Não há água suficientemente profunda?"
"Claro que sim! Mas não podemos afundar. Todos somos mais leves do que a água. Deixe-me explicar", ele acrescentou, percebendo o meu ar de espanto. "Vamos supor que você deseje obter uma raça de pombos que tenha determinado tipo ou cor. Você seleciona, ano após ano, aqueles que mais se aproximam desse ideal, mas se desfaz dos outros, não é verdade?"
"Exatamente", eu respondi. "Nós denominamos esse processo de 'seleção artificial'."
"De pleno acordo", disse Mein Herr. "Bem, nós utilizamos há séculos esse procedimento, sem interrupção, para selecionar as pessoas mais leves: por isso, hoje, todo mundo pesa menos do que a água."
"Então vocês jamais se afogarão no mar?"
"Nunca! Só corremos esse risco quando estamos em terra firme -assistindo, por exemplo, a uma peça de teatro."
"Como vocês poderão se afogar num teatro?"
"Nossos teatros são todos subterrâneos. Em cima, são construídos grandes reservatórios de água. Quando começa um incêndio, as torneiras são abertas e, num minuto, o teatro é inundado: a água chega até o teto! Assim, o fogo se extingue!"
"E o público também, imagino."
"Esse é um problema irrelevante", Mein Herr replicou despreocupadamente. "Mas o público fica satisfeito de saber que, afogado ou não, ele é mais leve do que a água. Nós ainda não chegamos ao nível de tornar as pessoas mais leves do que o ar, mas estamos concentrando esforços nesse sentido. Dentro de mil anos ou..."
"O que cês fazem com as pessoas muito pesadas?", Bruno perguntou seriamente.
"Nós temos aplicado o mesmo procedimento", Mein Herr prosseguiu, sem tomar conhecimento da pergunta de Bruno, "a inúmeros outros casos! Estamos, por exemplo, selecionando bengalas: conservamos apenas aquelas que se deslocam melhor e, algum dia, conseguiremos obter algumas que possam andar sozinhas! Estamos também selecionando algodão, para torná-lo mais leve do que o ar! É um material realmente muito útil! Nós o chamamos de 'imponderável'."
"E ele é usado para quê?"
"Bem, principalmente para embalar objetos que são enviados pelo Correio. Isso os torna mais leves do que o vazio, você não percebe?
"E como os funcionários do Correio calculam o valor que cada cliente deve pagar, para enviar seu pacote?"
"Essa é a parte mais interessante do sistema!", Mein Herr exclamou exultante. "É o Correio que deve nos pagar: nós não lhe entregamos nada! Geralmente, recebo cinco xelins ao enviar um pacote."
"Mas o governo não se opõe a esse sistema?"
"Bem, ele faz alguma objeção. Afirma, por exemplo, que o sistema se tornará muito dispendioso, com o passar dos anos. Mas a coisa é clara como a luz do dia, se considerarmos as suas regras: quando eu envio um pacote que pesa uma libra a mais do que o vazio, eu pago três pence. Ao contrário, se o pacote pesa uma livra a menos do que o vazio, eu deveria receber três pence!"
"O 'imponderável' é realmente um artigo muito útil!", eu concordei.
"Sim, mas o 'imponderável' também tem as suas desvantagens", acrescentou Mein Herr. "Outro dia, eu comprei algum e guardei no chapéu: ora, quando tomei o caminho de casa, o chapéu simplesmente saiu voando!"
"Cê hoje não colocou um pouco dessa coisa esquisita no seu chapéu?", Bruno quis saber. "Sílvia e eu vimos cê na estrada, e seu chapéu tava lá em cima! Não é, Sílvia?"
"Não, era uma coisa bem diferente", explicou Mein Herr. "Caía uma gota ou duas de chuva: assim, coloquei o chapéu na extremidade da bengala -como um guarda-chuva, veja você. E quando eu quis avançar pela estrada", ele continuou, voltando-se para mim, "eu fui surpreendido por..."
"... um chuvisco?", perguntou Bruno.
"Bem, parecia-se mais com um rabo de cachorro", Mein Herr replicou. "Era uma coisa muito curiosa! Senti algo esfregar-se afetuosamente na minha perna, mas, quando olhei para baixo, não vi nada! Contudo, mais além, havia um rabo de cachorro abanando sozinho no ar!"
"Oh, Sílvia!", Bruno repreendeu-a baixinho. "Cê não terminou de deixar ele de novo visível!"
"Sinto muito!", Sílvia respondeu, parecendo sinceramente arrependida. "Eu tinha a intenção de esfregar todo o seu dorso, mas a gente estava tão apressada! Irei vê-lo amanhã, para terminar de fazer isso e torná-lo visível outra vez. Pobre cachorrinho! Provavelmente ele não ganhará o seu jantar esta noite!"
"Claro que ele não vai ganhar, Sílvia!", disse Bruno. "Ninguém dá um osso prum rabo de cachorro!"
Mein Herr olhou para as duas crianças com grande assombro. "Eu não compreendo o que vocês estão dizendo", ele confessou. "Como eu estava perdido, retirei do bolso o meu mapa, mas ao abri-lo deixei cair uma luva. Contudo, a coisa invisível que roçava a minha perna trouxe a luva de volta!"
Tão grande era a perplexidade de Mein Herr, que considerei apropriado mudar de assunto. "Um mapa de bolso é algo muito útil", eu observei.
"Essa foi uma das coisas que aprendemos no seu país: como fazer mapas", disse Mein Herr. "Mas nós demos aos mapas um emprego muito mais amplo. Qual seria, na sua opinião, a escala do maior mapa realmente útil?"
"Seis polegadas para milha."
"Somente seis polegadas?!", exclamou Mein Herr. "Nós logo chegamos à escala de seis jardas para milha... e, depois, à escala de cem jardas para milha. Finalmente, tivemos a nossa grande idéia! Construímos o mapa do país na escala de uma milha para milha!"
"E vocês o utilizaram muito?", eu perguntei.
"Ele nunca foi aberto, até hoje", disse Mein Herr. "Os fazendeiros se opuseram, dizendo que o mapa cobriria todo o nosso território e impediria a recepção da luz do sol! Por isso, atualmente, usamos o nosso próprio território como mapa do país, e eu lhe asseguro que ele funciona muito bem. Permita-me agora fazer-lhe uma outra pergunta. Qual seria, na sua opinião, o menor mundo onde você gostaria de morar?"
"Eu sei!", exclamou Bruno, que ouvia atentamente. "Eu queria um bem, bem pequeno, só pra mim e pra Sílvia!"
"Neste caso, vocês teriam de residir em lados opostos", disse Mein Herr. "E, assim, você jamais veria a sua irmã!".
"E eu não ia ter lições!", disse Bruno.
"Você por acaso está sugerindo que o seu país também realiza experiências desse tipo?", eu perguntei.
"Bem, não se trata de uma experiência: nós não pretendemos construir planetas. Mas um cientista amigo meu, que já realizou várias viagens de balão, contou-me que visitou certa vez um planeta muito pequeno: em 20 minutos, ele percorreu toda a sua superfície! E ele ainda presenciou lá uma batalha entre dois exércitos, que terminou de forma bastante curiosa: o exército derrotado fugiu a toda velocidade e poucos minutos depois encontrou-se face a face com o exército vitorioso, que voltava para casa -este assustou-se tanto quando percebeu que ficara entre dois exércitos, que se rendeu imediatamente! Naturalmente, depois disso, os soldados vitoriosos perderam a batalha, embora, para todos os efeitos, os soldados inimigos estivessem todos mortos."
"Soldado morto não foge", Bruno comentou pensativamente.
"Bem, 'morto' é um termo técnico", explicou Mein Herr. "Nesse pequeno planeta, as balas são feitas de uma matéria escura e macia, que deixa uma marca em tudo o que toca. Assim, ao final de cada batalha, ambos os exércitos se põem a contar o número de soldados 'mortos', isto é, o número de soldados 'marcados' nas costas, pois as marcas no peito não valem."
"Neste caso, um soldado só poderá 'matar' o inimigo quando este estiver fugindo", eu comentei.
"Meu amigo cientista concebeu um estratagema melhor do que esse. Ele mostrou aos dois exércitos que as balas, quando atiradas para trás, dariam a volta pelo globo e atingiriam o inimigo pelas costas. Depois disso, o pior atirador foi considerado o melhor soldado, e o pior de todos recebeu a Grande Medalha."
"E como eles descobriram o pior de todos?"
"Foi fácil. O melhor tiro, você sabe, é aquele que atinge o alvo que está à frente do atirador. Ora, o pior tiro, evidentemente, é aquele que atinge o alvo que está às costas do atirador."
"Os habitantes desse planeta são pessoas extraordinárias", eu comentei.
"Eles o são, sem dúvida! Mas a coisa mais extraordinária de todas é o seu sistema de governo. Neste planeta, conforme fui informado, uma Nação é constituída por um Rei e um certo número de Súditos. Naquele pequeno planeta, porém, ela é constituída por um certo número de Reis e por um único Súdito!"
"Você disse que 'foi informado' sobre a vida no nosso planeta!", eu observei. "Devo concluir que você é um visitante de outro planeta?"
Bruno aplaudiu, cheio de contentamento. "Cê não é o Homem da Lua?", ele perguntou.
Mein Herr parecia alarmado. "Eu não estou na Lua, minha criança", ele explicou evasivamente. "Mas, retomando o que eu dizia, parece-me que aquele método de governo funciona muito bem. Veja você: os Reis sem dúvida farão Leis contraditórias, mas o Súdito, em compensação, jamais poderá ser punido, pois, não importa o que ele faça, ele estará sempre obedecendo a alguma lei."
"E, qualquer coisa que ele faça, ele também vai desobedecer a uma Lei!", exclamou Bruno. "Por isso, ele vai ser punido toda hora!"
Lady Muriel passou por nós nesse momento e ouviu as últimas palavras ditas por Bruno. "Nesta casa, ninguém será punido!", ela disse, tomando Bruno nos braços. "Este é o Hall da Liberdade! Vocês me emprestariam as crianças, por um minuto?"
"Pelo que vejo, as crianças nos abandonaram", eu disse a Mein Herr, quando Lady Muriel se afastou, levando os dois irmãos. "Assim, nós, os velhos, devemos fazer companhia um ao outro."
O velho sábio suspirou. "Ah, sim! Nós somos velhos agora, mas já fomos crianças, uma vez... Pelo menos, suponho que sim."
Não pude deixar de reconhecer, olhando para os seus cabelos brancos e desgrenhados, que era difícil acreditar que alguma vez ele havia sido criança. "Você gosta dos jovens?", eu perguntei.
"De jovens estudantes, sim", ele replicou. "Mas não particularmente de crianças. Durante muitos anos, fui professor de jovens estudantes, na minha querida e velha Universidade!"
"Não ouvi, perdoe-me, o nome da Universidade", eu comentei.
"Eu não disse o seu nome", o velho sábio respondeu delicadamente. "É um nome que não significaria nada para você. Mas eu poderia falar-lhe das mudanças por que ela passou. São histórias estranhas que iriam entediá-lo, certamente."
"Não, absolutamente!", eu disse. Por favor, prossiga. Que tipo de mudanças?"
Mas o velho sábio parecia mais disposto a fazer questões do que a oferecer resposta. "Conte-me", ele pediu, pousando delicadamente a mão no meu braço, "conte-me uma coisa. Pois eu sou um estrangeiro e conheço pouco o método educacional usado por vocês. Algo me diz, porém, que estamos mais avançados no eterno ciclo de mudanças e que muitas teorias que já pusemos em prática e depois consideramos falhas, vocês ainda irão adotar com grande entusiasmo. Então também descobrirão, com uma amargura ainda maior, que elas são imperfeitas!"
À medida que Mein Herr falava (as palavras lhe saíam mais livres e ritmadas), o seu rosto foi adquirindo uma certa luminosidade interna: de repente, para a minha surpresa, todo o homem estava transfigurado e parecia 50 anos mais moço.

Tradução de Sérgio Medeiros.

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