São Paulo, domingo, 28 de abril de 1996
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Delírios de um matemático

SÉRGIO MEDEIROS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sílvia é uma lady, Bruno não é um gentleman: ela gosta de jardins, ele de charcos; ela admira flores, ele, rãs. Ambos são irmãos e companheiros inseparáveis, embora tenham temperamentos opostos: ela é serena e delicada, ele, impertinente e buliçoso. Suas extraordinárias aventuras estão narradas em "Sílvia e Bruno", terceiro "livro infantil" de Lewis Carroll. Uma seleção das melhores aventuras protagonizadas pelos dois personagens será publicada no segundo semestre de 1996 pela Iluminuras, com o título "Algumas Aventuras de Sílvia e Bruno".
A obra, que inaugura um gênero novo, exigiu do autor vários anos de dedicação: a primeira parte de "Sylvie and Bruno" começou a ser escrita em 1867 (era apenas um conto de fadas: "A Vingança de Bruno") e só foi concluída, duas décadas depois, em 1889. A segunda parte, "Sylvie and Bruno Concluded", apareceu em 1893. No total são 50 capítulos, que podem ser lidos como contos independentes. Quando publicados dentro dos padrões recomendados pelo escritor (letras graúdas e edição ilustrada), esses capítulos compõem um livro de 700 ou 800 páginas.
A obra desconcertou os críticos e os leitores de Carroll, que esperavam talvez uma continuação de "Alice no País das Maravilhas" (1865) e "Através do Espelho" (1871). Carroll, no entanto, havia imposto a si mesmo um desafio: o de escrever uma obra de ficção que fosse diferente de seus dois livros anteriores. No prefácio de 1889, ele declara que em literatura o mais difícil é ser original. Depois de mencionar seus numerosos imitadores, também afirma que queria abrir para si mesmo, com "Sílvia e Bruno", um caminho jamais trilhado por outro escritor. Assim, esse romance (ou melhor, ciclo de histórias) se configurou como uma obra experimental e, por isso mesmo, exigiu longa dedicação do autor, opondo-se, nesse aspecto, aos livros anteriores, escritos com mais "espontaneidade".
As aventuras de Alice são os sonhos de uma menina de sete anos; as aventuras de Sílvia e Bruno, em troca, são os delírios de um professor de matemática aposentado (como o próprio Dodgson) que teria quase 70 anos. Ele sofre de uma grave moléstia do coração e passa boa parte de seus "últimos dias" adormecido: acredita ser capaz de visitar o país do outro lado, onde encontra a fada Sílvia (aproximadamente, oito anos) e o duende Bruno (entre cinco e seis anos). Na segunda parte do livro, esses dois personagens visitam em carne e osso o narrador, assumindo a aparência de crianças quase normais.
Mas a grande originalidade da obra não se resume a esse narrador debilitado e incapaz de distinguir o sonho da realidade. No prefácio da primeira parte, Carroll destacou o método de composição do livro: primeiro escreveu os episódios, depois criou o fio da história. Os outros escritores, na sua opinião, elaboravam primeiro uma trama, que depois preenchiam com episódios criados em função dela e só para ela. Carroll pensava que esse método é útil para escrever cartas, não obras originais.
Outra ousadia do autor foi publicar a obra em duas partes, sem contudo anunciar que o livro de 1889 (inconcluso) teria uma sequência em 1893. Esse "work in progress" foi muito mal recebido pela crítica da época. "Nonsense", condenaram os críticos, irritados com aquele amontoado caótico de histórias que tentava reconstituir, como o faria depois James Joyce em "Finnegans Wake" (1939), a vida mental de um homem que morre e desperta. (As duas obras coincidem em outros pontos: começam ambas, por exemplo, no meio de uma sentença, que foi proferida "fora" do livro.) "Exatamente, nonsense", retrucou cheio de si Lewis Carroll.
Derek Hudson, um dos primeiros biógrafos de Carroll, opinou em 1954 que "Sílvia e Bruno" era "um dos malogros mais interessantes da literatura inglesa", veredicto que ficou célebre. Florence Becker Lennon, num livro publicado em 1962, foi ainda mais severa e qualificou o romance de "livro terrivelmente enfadonho".
Contudo, como notou Martin Gardner (responsável pela edição comentada das duas Alices), a crítica tem demonstrado, nas últimas décadas, um interesse cada vez maior por essa obra desconcertante, na qual o leitor incauto depara com coisas que jamais sonharia encontrar num "livro infantil": um duende que arrasta pelo rabo um rato morto que lhe serve de sofá ou um severo médico vitoriano que defende a idéia, diante de uma audiência constituída por aristocratas, de que a lua-de-mel deve preceder o casamento...
Gilles Deleuze, num ensaio de 1993, não hesita em chamar o volumoso romance de obra-prima. O corriqueiro conto de fadas protagonizado por um menino rebelde, tornou-se hoje o núcleo de uma obra atualíssima e fascinante, que ainda não foi inteiramente descoberta: eis a vingança bem-humorada de um romancista injustiçado pela crítica e pelos leitores, que sempre preferiram o encanto de Alice às perversidades de Bruno.

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