São Paulo, domingo, 28 de abril de 1996
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As angústias da lucidez

MOACYR SCLIAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

O ano era 1964. O golpe já se havia consolidado, esmagando a pequena resistência que encontrara no Rio Grande do Sul -o Rio Grande que, três anos antes, pusera-se de pé pela legalidade democrática, forçando os militares a aceitar João Goulart como presidente. O clima emocional era de depressão, quando não de desespero. Mas havia um consolo. Todos os dias íamos à Praça da Alfândega, no centro de Porto Alegre, onde havia uma banca que vendia o "Correio da Manhã", o jornal que se transforma numa tribuna contra a ditadura.
Líamos as notícias, líamos os editoriais, mas sobretudo líamos os artigos de Carlos Heitor Cony (depois reunidos na coletânea "O Ato e o Fato"), cuja admirável coragem representava um alento para nós, os jovens. Cony não tinha medo. Dizia tudo o que queríamos dizer, dizia tudo o que precisava ser dito. Ele era o nosso respiradouro. Por intermédio dele chegava-nos o ar de uma democracia que (eu achava) nunca mais voltaríamos a ter.
Naquele mesmo ano de 1964 apareceu "Antes, o Verão" que imediatamente se tornou leitura obrigatória. Afinal, era obra de Cony. Tinha inclusive um prefácio do grande intelectual Otto Maria Carpeaux, outro intrépido resistente. Ele acentuava que o verão de Cony era uma contrapartida ao shakespeariano "winter of our discontent", o inverno de nosso descontentamento (descontentamento político, claro). Mas, acentuava Carpeaux, o Cony romancista surpreenderia os leitores do Cony jornalista.
E surpreendeu mesmo, pelo menos aqueles que esperavam do escritor uma obra engajada, como as do realismo socialista que, até a década anterior, tinham empolgado os leitores de esquerda. A começar pelo cenário, Cabo Frio, que nada tinha a ver com vila popular ou com a Sierra Maestra de Fidel. Os personagens não eram operários, nem guerrilheiros, gente da classe média carioca. Não era o caminho de um Gorky ou de um Ebrenburg que Cony trilhava mas sim -a lista é de Carpeaux- o caminho de Sartre e Beckett, Moravia e Goytisolo.
A referência a Sartre é particularmente pertinente. Não o Sartre revolucionário, o Sartre maoísta, e sim o Sartre de "A Náusea". Pois é de náusea que se trata. Sob o signo da náusea vive o personagem principal do romance, Luís. Ele construiu uma casa em Cabo Frio, uma casa enorme, pousada na areia como uma baleia branca, uma Moby Dick. No ventre desta baleia é que se desenrolará boa parte da história. A casa representa o sonho do classe média Luís; entre outros detalhes, tem uma lareira -inútil, porém decorativa- e uma estante de livros, na qual há obras de Sartre e de Simenon.
Na casa a família deveria viver feliz. A família, como manda o figurino, compõe-se do casal e de dois filhos adolescentes. A mulher, Maria Clara, é filha de um milionário, o velho Viana, com quem Luís tem uma relação conflituosa.
Na casa recém-construída Luís viveu com a mulher noites de intensa paixão. Agora, porém, o tempo passou, e ele já não a ama. Voltando sozinho a Cabo Frio terá um caso com Dréia, que também tem casa ali, também se entedia, mas que quer apenas se divertir um pouco. Nada consequente. Nada pode ser consequente neste mundo em que as areias, o sal, os ventos (que dão título às três partes do romance) dominam. Areias e sal, levados pelo vento, penetram em toda parte: a esterilidade pervasiva.
Além da casa e da praia, os automóveis desempenham um papel importante na história. A Mercedes de Luís (naquela época Mercedes já era símbolo de status) e um misterioso Oldsmobile. Mistério, sim; há um cadáver na história, um cadáver na estrada; o que explica Simenon ao lado de Sartre. Há alguma ligação entre esse homem e Maria Clara? A investigação não prospera, o componente policial não chega a decolar. Vem de fora um inspetor, mas ele não identifica o assassino: "Somos todos inocentes", conclui Luís.
O verão acaba e, com ele, a vida conjugal. Sozinho na casa com a mulher, Luís ainda pensa em reconciliação, mas não consegue dar o passo: "Tédio em recomeçar. Está muito velho para a generosidade; muito cansado para reiniciar caminhos. Vê a goela da lareira, os ladrilhos vitrificados cor de fogo. Haverá, talvez, restos de cinza ali. Deveria ter feito um museu de si mesmo, agora que tudo está terminando".
Com o que retornamos ao início: o fogo de 1961, ou os ladrilhos cor de fogo de 1961 deram lugar às cinzas de 1964. O tédio tomou conta de boa parte da classe média brasileira, transformada num museu de si mesma. Apática, ela viu os tanques rolarem nas ruas das cidades sem esboçar qualquer reação. A náusea sartreana "au grand complet". Cony articulista reagia contra a situação que Cony romancista descrevera. "Gastarei esta última noite horrivelmente lúcido", diz Luís, no final. Houve uma época, neste país, em que a lucidez era horrível. Esta época, Carlos Heitor Cony a descreveu com sensibilidade, e, sobretudo, com lucidez.

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