São Paulo, domingo, 28 de abril de 1996
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Segredos de um fã de meninas

RICHARD JENKINS
ESPECIAL PARA "THE NEW REPUBLIC"

Lewis Carroll teve uma vida bastante monótona. Charles Dodgson, para usar seu nome verdadeiro, foi criado feliz e tranquilamente em casas paroquiais no norte da Inglaterra, primeiro em Cheshire e depois em Yorkshire, quando seu pai se tornou diácono em Ripon. Aos 18 anos ele foi estudar em Christ Church, Oxford, onde passaria o resto da vida lecionando e estudando matemática. Viajou ao estrangeiro apenas uma vez (para a Rússia), e parece que não quis repetir a experiência.
Foi uma vida recolhida, mas razoavelmente intensa: ele escreveu trabalhos sobre lógica e temas semelhantes; foi um pioneiro do que era então a delicada arte da fotografia; entusiasmou-se pelas trivialidades da política acadêmica e atuou como organizador da "sala de recreação" da faculdade, organizando sua vida social e encomendando vinhos para a adega. Poderia ter sido esquecido, não fosse, é claro, pelas histórias de Alice. Segundo Morton Cohen, elas são, depois da Bíblia e de Shakespeare, os livros mais amplamente lidos e citados no Ocidente.
A vida de Charles Dodgson de certa forma ajuda a explicar o gênio de Lewis Carroll. Sua imortalidade deve-se quase inteiramente ao acaso. Numa "tarde dourada" de julho de 1862, ele fez um passeio de barco pelo Tâmisa com as filhas de Henry Liddell, o reitor de Christ Church. Como sempre, inventou uma história para entretê-las. Alguns dias depois, Alice passou a importuná-lo para que a escrevesse; para agradar à menina ele concordou, e o resto é história -ou melhor, ficção. Esta é a chave de metade da importância de "Alice no País das Maravilhas". Como "Um Estudo em Vermelho" e (talvez) o "Satyricon", é uma obra-prima acidental, criada com facilidade por um escritor que não tinha noção do que gerava.
O livro de Cohen faz um apanhado bastante amplo da vida de Dodgson. É certamente um trabalho realizado com amor, cuidadosamente documentado, acrescido de fartas reminiscências de pessoas que conheceram o biografado e entremeado de excelentes ilustrações, muitas delas as próprias fotografias de Lewis Carroll.
Qualquer biógrafo de Dodgson deve abordar aspectos de sua vida que atraem especialmente a curiosidade moderna (ou os pruridos): seu interesse apaixonado por meninas. Cohen enfoca esse assunto intrigante com cuidado e seriedade, recusando-se a condescender com o biografado. Seu relato salienta a assiduidade com que Dodgson, durante toda a vida, procurou fazer amizade com meninas, e que essas amizades -geralmente passageiras, mas nem sempre- eram sua mais profunda fonte de prazer. Ao longo de 15 anos ele fotografou várias delas nuas, e mais uma vez fica claro que foi singularmente contumaz nas negociações para que os pais delas o autorizassem.
Hoje Dodgson provavelmente receberia a visita da polícia. Os vitorianos eram muito mais sensatos. O relato de Cohen mostra que Dodgson foi uma ótima companhia para essas crianças: elas lembravam sua amizade com afeto, e não há a mais tênue prova de que algumas delas tenha sido prejudicada pelo fato de conhecê-lo.
A escrita de Dodgson é elucidada por sua vida profissional. Pois o paradoxo de "Alice" é que, apesar de provavelmente ser o livro mais voltado para crianças que já se escreveu, encerra o homem por inteiro. Cohen menciona um relatório escolar da adolescência de Dodgson sobre seu "amor pelo argumento preciso, que lhe parece natural", e cita o comentário perspicaz de um colega de magistério do autor: "Era evidente que em sua mente estavam sempre presentes dois elementos -a imaginação excêntrica e o amor pela definição precisa".
Alice experimenta até uma versão do "cogito, ergo sum" de Descartes: quando Tweedledum e Tweedledee sugerem que ela faz parte do sonho do Rei Vermelho, a menina refuta: "Se eu não fosse real, não seria capaz de chorar". Com Humpty Dumpty, toca ainda em outra grande questão filosófica, a da relatividade da linguagem: "Quando uso uma palavra, ela significa apenas o que eu quis dizer". "A questão é se você pode fazer as palavras significarem coisas diferentes."
"Alice" já foi submetida a diversas interpretações bizarras. Cohen enumera alguns exemplos: é uma alegoria do Oxford Movement, ou uma alegoria do darwinismo; é sobre o aprendizado das crianças para ir ao banheiro, ou sobre o trauma de nascimento de Dodgson. O problema de qualquer tentativa de transformar "Alice no País das Maravilhas" numa alegoria ou metáfora é ignorar o fato de que descreve um sonho.
Todos sabemos que nossos sonhos têm alguma ligação com nossa vida em vigília, e supomos que tenham um significado, mas não sabemos exatamente qual é, embora de Hierofantes de Artemidorus a Freud tenham afirmado possuir a chave. A esse respeito, "Alice no País das Maravilhas" é notavelmente parecido com um sonho verdadeiro; podemos concordar que a Lagarta e a Rainha de Copas possuam a impaciência e a imprevisibilidade que os adultos dedicam às crianças, mas não obstante são criações da mente adormecida de Alice. Supor que elas representem professores de Oxford e suas esposas, como fizeram, é substituir a qualidade onírica do livro por um literalismo monótono.
Dodgson era um homem estranho, mas se desconhecem as fontes dessa estranheza. Cohen pretende atribuir suas peculiaridades aos efeitos de um ambiente familiar repressivo e um pai severo. Não há provas a favor disso. Ao contrário, o interessante relato do próprio Cohen sobre o pai apresenta-o como um homem humano e compreensivo -e o biógrafo cita uma deliciosa carta "nonsense" escrita pelo diácono para o filho de sete anos, que revela a origem de boa parte do humor de Lewis Carroll.
Cohen afirma que a criação de Dodgson foi severa, e seu pai exigente, porque assim eram os pais do século 19. Mas, mesmo que esta premissa sobre a sociedade vitoriana fosse verdadeira -e provavelmente não o é-, não teria uma força explanatória. Se a criação de Dodgson foi típica de sua época, por que os demais não foram celibatários obcecados por meninas?
O fim da vida de Dodgson tem um sabor melancólico. Aos 50 anos ele já começava a referir-se a si mesmo como "velho". E um tom melancólico também parece pairar em torno de Alice Liddell. Ela casou-se com um homem inócuo e passou quase o resto de sua longa vida num casarão, enfrentando problemas com a criadagem e com o inexorável declínio das fontes de renda da aristocracia. E essa criança do pleno verão vitoriano sofreu a perda de dois filhos, mortos no fronte ocidental.

Onde encomendar: "Lewis Carroll: a Biography", de Morton N. Cohen (Knopff, 577 págs., US$ 35) pode ser encomendado em São Paulo, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4933) e, no Rio de Janeiro, à Livraria Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124, tel 021/294-6396).

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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